sábado, 8 de fevereiro de 2020

Cortinas


Doutor Paulo Marinho conduz seu veículo pela autoestrada com sua atenção parcialmente na estrada por que a outra parte está fixa nas coxas recém-depiladas de sua jovem esposa sentada no banco do carona ouvindo música nos fones de ouvido. Ana Marinho não sabe, mas seu esposo está a ponto de parar o carro no acostamento e antecipar a noite de núpcias. Por mais que eles já tenham transado antes a virilidade do médico depois do casamento aumentou consideravelmente. Paulo está radiante pois tem a seu lado a ruiva mais gostosa desse mundo e o que é melhor, ela está usando uma aliança a qual diante do reverendo ele mesmo a colocou no dedo anelar da mão esquerda dela.
Ele volta a olhar para o par de pernas da esposa e ela segue cantarolando num inglês fajuto a música que ouve nos fones. Paulo repousa sua mão enorme na perna de Ana que até então continua cantando o sucesso internacional. Paulo é ousado por isso ele vai subindo até parar com a mão na virilha da ruiva. Por fim Ana retira os fones e olha para ele.
- Melhor se concentrar na estrada senão nunca mais fará sexo.
- Como assim, serei multado por acariciar as pernas de minha mulher numa autoestrada?
- Claro que não. Estou falando com relação a você perder o foco e causar um acidente, só isso.
- Você está certa, mas confesso que fica difícil me concentrar vendo você com esse shortinho e essa blusinha.
- Esses homens, todos iguais, não conseguem ver nada de interessante numa mulher além de peito, bunda e vagina.
O médico volta com sua total atenção para a estrada e Ana mergulha mais uma vez no som empolgante da canção executada na rádio. O casal Marinho se conheceu durante uma festa a qual Ana fazia um bico como fotógrafa. O salão estava lotado, mal dava para se locomover. Paulo entre um chopp e outro visualizou aquela linda menina de rosto salpicado batendo as melhores fotos da aniversariante. O médico estava recém-saído de um namoro onde ambas as partes juraram se odiar para sempre. Sinceramente ele havia se desgastado demais e seu coração pediu um tempo para se recuperar da tempestade. Mas ao ver Ana esbanjando sua beleza atrás daquela máquina fotográfica e procurando o melhor ângulo para registrar as imagens, seu coração o alertou dizendo que já era hora de se refazer.
Tudo começou naturalmente. Uma troca de olhares, um sorriso simpático que depois passou a ser mais convidativo e pronto. Quando o evento terminou, Ana e Paulo estavam saindo juntos trocando os números e marcando o primeiro encontro. Desde então eles não se separaram mais. A ruivinha ajudou na cicatrização do coração do jovem médico que não consegue se ver longe da fotógrafa.
Eles passam por uma placa que indica que estão próximo do lugar onde passarão dez dias curtindo o ar puro do campo e longas noites de vinho e sexo. Ana cruza as pernas e Paulo volta deixar a estrada em segundo plano.
- Depois você me chama de tarado.
- O que? – retira os fones.
- Se eu bater a culpa e sua, toda sua.
- Posso saber por que?
- Você me provoca cruzando as pernas.
Ana não dá muita atenção. O carro sai da estrada e entra numa rua onde uma placa dar as boas vindas aos visitantes. Em seguida eles alcançam outra rua bastante estreita cheia de cascalhos e buracos. Como sempre Paulo reclama da péssima conservação da rua e torce para que nada de mal com seu veículo. Mais adiante eles contemplam uma casa cercada por madeiras no meio da floresta. O endereço bate.
- Chegamos, amor.
- Nossa, que casa ajeitadinha. – diz Ana tirando o cinto. – Já amei de cara.
- Que bom que gostou.
Paulo para o carro perto do portão principal também feito de madeira. A casa está inteira, mais parece que não vê uma tinta a anos. A cor que um dia fora branca agora dá lugar a um amarelo com marcas de infiltrações. O telhado precisa de uma reforma e até quem sabe trocar por telhas mais novas. Paulo encontra dificuldades para abrir o portão já que a anos a fechadura é a mesma e vem sofrendo com os efeitos do tempo. Ana olha em torno e tudo o que vê são árvores, em sua maioria mangueiras e eucalipto. Um lugar simplesmente revigorante.
- Consegui. – anuncia o médico.
- Que bom, vamos.


*


Por dentro até que não deixa a desejar. Poucos móveis, uma sala ampla, um pouco empoeirada, mas pudera, essa casa não recebe visita a anos. O cheiro de mofo incomodou as narinas de Ana, mas nada que a faça desanimar. Ela vai até a cozinha. Também nada de muito especial. O azulejo azul enfeita até a metade da parede e tanto a pia como a torneira precisam de uma limpeza urgente. Paulo sobe as escadas a fim de verificar o quarto, a parte da casa que mais lhe interessa no momento.
O doutor abre a janela e a vista que tem é algo sensacional. Pássaros em seus ninhos, o verde vivo e a brisa tranquila que invade aquela acomodação.
- Amor, vem ver. – Paulo grita olhando a cama gigante.
Ana sobe de dois em dois degraus.
- Oi?
- Eu já te imagino nua, deitada nessa cama enorme.
Ana não aguentou e teve que ceder as investidas do marido. Eles se abraçam, se beijam e Paulo começa a levantar a blusa da esposa que não oferece resistência. Ele a puxa para mais perto dele até quase sufocá-la.
- Socorro, casei com um tarado. – ela brinca. – lembrando que ainda temos que desfazer as malas mocinho.
- Depois a gente desfaz as malas, agora por favor me ajude a tirar esse peso.
Paulo e Ana se entregam ao prazer ali mesmo com a janela aberta. Um pardal pousa no beiral quando Ana sobe no marido sentindo ele dentro dela. As respirações se fundem quando ambos chegam ao ápice. Ana desfaz o penteado do médico que nessas horas não se importa. Dez minutos depois eles estão no chuveiro se beijando com a água fria escorrendo pelos seus corpos em erupção. Paulo não sossega um segundo. Mais uma vez ele permite que sua esposa delire com o prazer que ele lhe proporciona. Cansados, mas felizes. O banho termina. Hora de pegar no pesado.


*


Ana varre a sala enquanto Paulo ajeita as coisas no quarto. Usando seus inseparáveis fones de ouvido enterrados nas orelhas, a fotógrafa vai limpando a sujeira e cantando sucessos de sua playlist quando dá de frente com uma cortina. Ela para o que está fazendo e passa a observar melhor a estampa. São figuras desformes, algo que não dá para distinguir. Ana olha mais de perto quase lhe provocando um torcicolo tentando decifrar os desenhos e mesmo assim não consegue.
Paulo desce segurando uma máquina fotográfica, o xodó de Ana. Sem a esposa perceber ele faz alguns registros.
- Uau, que pose é esse, hein. – mais fotos.
- O que está fazendo com isso? – diz irritada. – já falei que não quero que mexa nas minhas coisas, ainda mais com meu material de trabalho.
- Não resisti vendo você varrer usando esse shortinho, acho que estou ficando animado de novo.
- Sossega, doutor Paulo Marinho. – pega a câmera dele. – veja, eu não tinha notado essa cortina, e você?
Paulo coloca as mãos na cintura e passa a analisar o adereço doméstico. Sim, é de causar estranheza em qualquer um. Os desenhos lembram crânios e em outro momento rostos diabólicos que parecem sorrir para quem os olha.
- Cruz credo. – diz o médico.
O casal segue ajeitando a casa. Paulo precisou sair para providenciar a comida. Ana ficou e aproveitou os momentos sozinha para abrir o notebook e conferir as fotos batidas de seu último trabalho antes do casamento. Sentada e concentrada na tela do aparelho ela não percebe que a cortina se move mesmo com a janela atrás fechada. A ruiva conserta o rabo de cavalo com uma certa habilidade e depois volta a clicar nas imagens do ensaio produzido por ela em seu estúdio. A cortina volta a se mover e dessa vez chamando atenção de Ana que vira a cabeça em sua direção. Um arrepio a surpreende de tal forma que ela não pode evitar o grito.
- Meu Deus!
Ana olha para a porta aberta e acredita que tenha sido uma corrente de ar. Ainda respirando forte ela volta para o computador e termina de editar as imagens. Paulo chega com a comida.
- Amor, temos pizza, comida japonesa, vinho e de sobremesa sorvete.
- Uau, vamos comer, estou faminta.


*


A lua resolveu presentear a noite com seu brilho e o vento frio complementou. A casa que foi cedida ao casal está em pleno silêncio que as vezes é quebrado pelos gemidos de Ana durante mais uma sessão de sexo. A porta do quarto está encostada, porém ela é aberta somente o suficiente para contemplar a fotógrafa praticando equitação no marido. Ana ao abrir os olhos emite um berro e se agarra ao esposo.
- Nossa, calma, está tão bom assim? – diz Paulo.
- Tinha alguém na porta do quarto nos olhando.
- O que?
- Ai, meu Deus. – Ana entra em pânico.
Paulo se levanta. Vai até sua mochila e pega sua pistola. Ana continua encolhida e envolvida nos lençóis na cama.
- Vou descer e dar uma olhada.
- Tenha cuidado, amor.


O médico vai descendo devagar, degrau por degrau. Mesmo com a arma em punho ele tem medo. A escuridão não é total, a luz da lua ultrapassa os vidros das janelas deixando a casa menos assustadora. Ele alcança a cozinha. Tateando ele encontra o interruptor. Nada. Vai até a sala. Passa pela cortina e olha para as figuras da estampa e elas já não possuem mais aquele sorriso infernal. As expressões agora são de completo ódio e sede de morte. Paulo nunca foi muito crente, mas agora ele é obrigado a fazer o sinal da cruz mesmo mal e porcamente. Ele anda apressado até o banheiro da parte de baixo da casa e não há nada lá também. Antes de voltar para o quarto e tentar retomar a atividade com a esposa ele ainda confere se as portas e janelas estão trancadas. A sala volta a ficar vazia e a cortina se move lentamente.


*


Paulo fez questão de acordar primeiro que sua esposa e lhe preparar o melhor café da manhã de sua história. Na mesa há frutas, pão, leite, torradas, café puro e ovos mexidos. Tudo pronto, agora é só esperar que a donzela desperte. Enquanto isso o médico resolve sondar os arredores da casa que um dia pertenceu sua vó materna. Na parte de trás não há quase nada, somente algumas árvores de médio porte, mato e muito mosquito. Realmente eles se encontram no meio do nada. Paulo volta para dentro de casa e assim que entra na sala ele tem a impressão de ver alguém subindo as escadas.
- Ana, já acordou?
Não há resposta. Ele olha em direção da cortina que se move. Dois passos para trás e o coração do moreno claro de cavanhaque bem desenhado quase sai pela boca.
- Mas que porcaria é essa?
As figuras diabólicas voltaram a sorrir. Cada uma com seu sorriso que parece debochar da cara de espanto do doutor. Paulo leu certa vez que o medo faz com que a mente crie monstros, talvez seja isso que esteja acontecendo com ele agora. O jovem clínico geral corre até o quarto onde sua esposa dorme como um bebê.
- Bom dia flor do dia.
- Oi! – se espreguiça. – o que temos para o desjejum?


*
- Eu sou capaz de jurar que vi uma pessoa nos olhando na cama ontem. – pega mais uma torrada.
- Sério? – adoça o café.
- Sério. Estava escuro, mas...
Paulo abaixa a cabeça e de repente ele se distancia mexendo o café, ele mal ouve o que sua mulher falou depois disso.
- Paulo? O que houve? Você ficou parado olhando para a xícara.
- Minha avó morou aqui por muitos anos, acho que já lhe contei isso. Depois que meu avô morreu ela ficou depressiva e decidiu passar algum tempo sozinha.
- Meu Deus, uma senhora sozinha vivendo nesse lugar isolado de tudo?
- Pois é. E quando minha avó finalmente voltou para civilização, ela tinha nos olhos um certo medo, pior que isso, ela estava em pânico, quase não falava, dormia mal a noite, até que certo dia ela dormiu e nunca mais acordou.
- Caramba, mas o que aconteceu?
- Minha mãe acha que minha vó sofreu experiências sobrenaturais aqui, nessa casa.
Ana se arrepia.
- Mas eu acho que tudo não passou dos efeitos colaterais dos remédios.
- Ontem eu vi aquela cortina da sala se mexer sem vento, sem corrente de ar. Muito esquisito.
Paulo engole seco.
- Eu, eu também vi, hoje, agora de manhã.
- Ai meu Deus, vamos embora agora dessa casa.
- Calma, Ana, isso tudo deve ser fruto da nossa imaginação, estamos impressionados com a história da minha vó, só isso.
- Será?
- Claro. Agora termine o café.


*


Ana passou boa parte do dia registrando imagens da natureza e percebe o quanto precisava dar um tempo em sua vida na cidade grande. O contato com as plantas, os pássaros e as árvores têm feito muito bem para ela que no dia a dia vive as voltas com o trabalho. Enquanto seu esposo dorme na sala, ela resolveu mergulhar fundo batendo fotos e oxigenando o cérebro ao mesmo tempo.
A fotógrafa anda até a parte de trás da casa na intensão de buscar a melhor imagem de um passarinho que insiste em cantar. O pássaro presenteia a mulher de Paulo pousado num galho baixo. Ana melhora o foco e clica. Pronto, agora sim ela pode voltar para dentro da casa e iniciar sua edição das fotos da lua de mel. Ela olha para cima e na janela do quarto uma figura de olhar triste segue parada olhando para Ana que ao visualizar quase sofre uma queda.
- Cristo. Quem é você?
Ana corre até a parte da frente. A porta está do mesmo jeito que deixou. Ana entra na casa e Paulo continua roncando no sofá com o livro que estava lendo caído em seu rosto.
- Paulo, acorda, Paulo, tem alguém no nosso quarto.
Ainda sonolento o médico acorda. Olha para a esposa apavorada.
- Tem certeza? – boceja.
- Eu não estou louca.
Paulo dispara escada acima. Antes de entrar no quarto ele faz outra vez o sinal da cruz. Abre a porta e nada, o quarto está vazio. Ele corre até a janela e tudo o que vê são árvores e mato. Aliviado, mas ainda com medo Marinho vai até sua mochila e pega sua arma. De repente um grito. Em segundos o médico está na sala assistindo o bailar das cortinas. Ana está abaixada no canto com os olhos fechados e as mãos nos ouvidos.
- As cortinas, as cortinas, estão se mexendo, tem alguém atrás das cortinas.
- Calma, amor, vou resolver isso.
O medo faz com que Paulo fique paralisado. Realmente parece que há alguém por trás daquelas cortinas. As figuras estampadas agora parecem gargalhar diante do estado do casal. Paulo aponta sua pistola, mas não atira. Dá mais um passo na intensão de abri-las, porém ele permite que o medo se transforme em pavor. Ana continua chorando pedindo para ir embora. Ele volta a olhar para elas e já não mais movimento.
- Parou, amor, veja.
- Paulo, promete que vamos embora? – o abraça.
- Sim querida, amanhã partiremos.
- Amanhã, por que não agora mesmo?
- Não sei, mais algo me diz que precisamos descobrir o que há nessas cortinas.
- Como assim, você agora é um exorcista, pastor...
- Querida, não podemos simplesmente ir embora e deixar essa coisa aqui e se ela nos seguir até em casa?
Ana se levanta com ajuda do marido. Olha para as cortinas que continuam paradas. As figuras na estampa já não oferecem mais pânico. A fotógrafa olha para a escada e tudo parece mais leve, mais arejado.
- Está sentindo essa paz?
- Sim, parece que algo ou alguém iluminou a casa inteira. – Paulo coloca a arma na cintura. – de qualquer forma permanecerei armado, se houver algo. – bate na Glock.


*


A parte da tarde foi mais tranquila. A lua de mel do casal Marinho seguiu naturalmente. Ana se acalmou e aceitou fazer amor. Eles se entregam ao prazer como nunca haviam se entregado antes. Paulo se entorpeceu com os movimentos e gemidos de sua ruiva. Foi intenso, forte e prolongado fazendo com que os corpos ficassem lustrosos de tanto suor. Da porta do quarto algo ou alguém os observa com seu olhar triste e uma expressão que varia do ódio a estranheza. O casal termina com suas loucuras diurnas e ambos se encontram esgotados.
- Nossa, que demais, não é? – Paulo se abana com as mãos.
- Sem palavras.
- Então, viu alguma aparição diabólica? – brinca.
- Até esqueci que estávamos em lua de mel numa casa assombrada.
O papo pós sexo foi descontraído com direito a fortes gargalhadas de Ana. A criatura que os observava já não está mais lá. Para o jantar foi escolhido um menu digno dos mais requintados restaurantes do mundo. Depois do banho compartilhado o médico precisou se ausentar deixando a fotógrafa envolvida com os preparativos.
Naquele lugar a noite nunca é bem-vinda. Da floresta é possível ouvir sons indecifráveis e o vento passa do fresco ao frio sepulcral. Ana se afasta da porta preferindo deixá-la fechada. Por precaução, Paulo deixou sua arma em casa. Para espantar as péssimas sensações Ana abre o notebook e reinicia seu trabalho de edição. Entre um clique e outro, seus olhos se voltam para as cortinas e elas estão paradas. Ana pensa nas possíveis situações vividas pela avó de Paulo ali sozinha dentro dessa casa. Teria as cortinas agravado o quadro depressivo da senhora Marinho? A final, o que aconteceu de fato dentro dessas quatro paredes?
O jantar foi dos deuses. Frutos do mar, coisa que Ana adora, não mais que chocolate. O vinho também brindou a noite com seu charme e sabor envolvente. Para a sobremesa sorvete de passas ao rum.
- Eu estive pensando no que aconteceu com sua vó, aqui, nessa casa.
- Sim?
- Essa casa, esse lugar, é muita carga para uma pessoa só, ainda mais para uma idosa.
- Você acha esse lugar carregado? Como assim? – Paulo prova do sorvete.
- Sei lá, as vezes acho que não estamos só em dois aqui, há algo de errado com aquelas cortinas. Não sabemos quem morou aqui antes dos seus avós.
- Sou meio cético quanto a essas coisas de ocultismo, mas que é muito estranho isso é, aquelas cortinas realmente se moveram sozinhas, não foi algo da nossa cabeça. Algo fez mal a minha vó e isso não passará em branco.


*


Paulo desperta no meio da noite. Ele sempre teve um sono leve. Ana ronca a seu lado e recebe um beijo de leve no ombro nú. Ela é linda, corpo perfeito, sadio e uma pele macia e perfumada. Paulo precisa urgente esvaziar a bexiga antes que um acidente aconteça. Ele deixa o banheiro um pouco mais leve porém precisa saber se tudo está em ordem na parte de baixo daquela casa. Antes de descer ele pega sua arma e sai do quarto. Mais uma vez ele é surpreendido pelo medo. Degrau por degrau, sem fazer barulho, o médico vai descendo. Escuro. A lua não deu as caras hoje, é preciso fazer com que os olhos se adéquam ao breu. Isso levou alguns segundos até Paulo conseguir identificar uma figura parada no meio da sala olhando para ele com aqueles olhos tristes. Se ele ainda estivesse com vontade de urinar, o acidente aconteceria nesse momento. Ele aponta a pistola. Não consegue controlar a tremedeira.
- Quem é você, como entrou aqui?
O ser de mais ou menos um metro e sessenta, roupas surradas, pele acinzentada, cabelos pretos ralos, rosto murcho e olhos caídos segue olhando para ele.
- Eu lhe fiz uma pergunta, como entrou aqui?
A criatura vinda das sombras aponta para as cortinas e as figuras estampadas se movem freneticamente causando no médico um mal estar repentino. Paulo se segura no corrimão pois sua visão começa a falhar.
- Meu Deus!
Aos poucos Paulo vai perdendo o controle de seu corpo. Sua parte motora é totalmente comprometida. A arma cai de sua mão. A figura continua olhando para ele que desaba na escada entre espasmos e convulsões. Os desenhos infernais nas cortinas vibram a cada movimento involuntária do pobre médico que vai se despedindo da vida da pior forma possível. Todo o corpo de Paulo parece que estar sendo sugado de dentro para fora até sobrar a pele e os ossos. Uma lágrima escorre de seus olhos e depois o brilho é ofuscado pela chegada da morte.


*


Ana acorda depois de ter a impressão de ter ouvido um barulho. Ela olha para o lado direito da cama e seu marido não se encontra. Na certa foi mijar, pensa ela. Ela não confere o horário, mas imagina passar das três da madrugada. De repente ela começa a ter sensações perturbadoras até quase sufocá-la. Ana é obrigada a se levantar e abrir a janela. A noite é abafada, os cabelos vermelhos cortados na altura dos ombros estão grudados no pescoço e na testa. Não há uma corrente de ar fresco para aliviar aquela sensação térmica incomoda.
A fotógrafa corre até o banheiro, abre com ligeireza a torneira e molha o rosto e a nuca. Aonde Paulo se meteu, ela pensa se olhando no espelho. Como toda mulher, Ana se admira, percebe o quanto emagreceu, não que fosse gorda, mas desde quando passou a morar junto com Paulo ela ganhou alguns quilinhos a mais. A água fria fez com que ela se arrepiasse e os mamilos marcassem a blusa fina de dormir.
Ana desce as escadas. Ela chama por Paulo algumas vezes e até então nenhuma resposta. O medo está a seu lado. O silêncio sepulcral naquela sala ajuda a tornar as coisas ainda mais difíceis.
- Paulo, você está ai?
Ela pisa em algo e escorrega batendo o joelho com força no chão. Xinga uma infinidade de palavrões e depois resolve ver o que a levou a cair.
- Meu Deus. – pega a pistola. – Paulo, você deixou sua arma aqui e eu quase quebrei a perna.
Ana se levanta. A dor no joelho ainda incomoda. Ela gira o pescoço em direção as cortinas que nesse momento estão se movendo mais que o normal. Pânico e ao mesmo tempo raiva. Mancando ela caminha segurando a pistola. Alguém precisa colocar um ponto final nessa história. As figuras com suas expressões fria parecem zombar da fotógrafa.
- Vão para o inferno.
Ana aponta a arma e com a outra mão ela abre as cortinas. O estômago de Ana faz um nó. O corpo seco de seu esposo pendurado na janela. Ela volta a cair, desse vez são suas nádegas que sofrem o impacto.
- Paulo! – grita.
A seu lado a criatura com os olhos úmidos. Ao ver aquilo, Ana se apavora e atira. O ser permanece intacto.
- O que fez com meu marido? – berra.
A garganta de Ana começa a doer e seu corpo formiga por inteiro. Ela tenta se colocar de pé e não consegue. Sua cabeça lateja e sua parte motora perde o controle. Ana baba e vê tudo rodando. Ela vai pro chão outra vez. Se rasteja.
- Só, só, socorro, alguém, nos ajude, por favor. – fala com voz pastosa.
O corpo de Ana começa a secar. Sua angústia alimenta as criaturas nas cortinas. A mulher arfa, seu tórax sobe e desce descontroladamente. Ana segue morrendo olhando para a criatura que abre um sorriso perturbador. O pouco que ainda lhe resta de vida, Ana questiona, o que há de errado nessa casa? A ruiva busca o último fôlego de vida. Pensa em seu marido, em seu casamento, em como eles seriam felizes e grita.
- Não quero morrer.
Paulo sai correndo do quarto ao ouvir o grito da esposa e desce as escadas sem notar os degraus.
- Amor, o que houve?
Ana olha para um lado e olha para outro. A casa está em perfeita luz. Ela olha para Paulo parado olhando para ela com os olhos esbugalhados.
- Ana, você está me assustando, o que houve?
- Nada, nada, eu só cantei alto, só isso. – se apoia na vassoura.
- Mas você gritou que não queria morrer.
- Foi a música. – aponta para os fones em seus ouvidos.
- Que bom, achei que você tivesse visto algum fantasma. Estou lá em cima, qualquer coisa não me grite.


A lua de mel foi como o esperado. Ana e Paulo saíram dali cheios de planos para a nova vida a dois. Foram dez noites seguidas de puro sexo e juras de amor. Enquanto seu marido termina de trancar o portão principal, Ana se acomoda no banco do carona e volta a pensar em seu devaneio sombrio. Só de lembrar ela se arrepia. Finalmente o médico consegue trancar o portão. Ele entra no carro, olha para as pernas da mulher que agora estão cobertas pela calça jeans.
- Feliz? – ele pergunta.
- Muito! – se beijam.
Paulo sai com o carro desaparecendo na floresta. Dentro da casa o silêncio lembra um cemitério e as cortinas se movem. FIM.















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