domingo, 10 de julho de 2022

Os Mortos


 

Os Mortos

Eu me lembro bem daquele dia. Foi realmente terrível. Pra começar, justamente naquela tarde eu não estava nenhum pouco afim de trabalhar. O dia havia amanhecido cinza, muitas nuvens e um chuvisco que não parava de cair hora alguma. Pra ser bem sincero estava bem frio na verdade, bom para ficar na cama tomando uma deliciosa sopa. Fazer o que? Sou pobre. Possuo dívidas. Tenho que trabalhar. Arrumei minhas coisas e fui.

Cheguei ao cemitério por volta das 17:45, bem próximo do rendimento do vigia diurno, Chico. Ao me ver cruzando os portões enferrujados o velho faltou me beijar de alegria.

- Que bom que chegou cedo. – me entregou às chaves. – que dia esquisito, não acha?

- Sim! Bastante estranho. – olhei para o céu com nuvens carregadas. – já conferiu o serviço de meteorologia?

- Não! – voltou para a guarita. – fiz café e tem um pedaço de bolo na geladeira. Pode comer se quiser.

- Valeu, Chico.

O vigia diurno pendurou sua bolsa surrada no ombro e olhou de maneira bastante intrigante para o cemitério.

- Realmente às coisas ficaram estranhas hoje, durante o dia todo. – fez o sinal da cruz.

- Está falando sério? – peguei a garrafa de café. – o que houve?

- Sei lá! Por diversas vezes senti que andavam entre os túmulos. – outra vez Chico fez o sinal da cruz.

Sorri e olhei para além do lugar.

- Não será coisa da sua cabeça?

- Tenho 70 anos, mas não estou caduco. Ainda. – sorriu mostrando dentes amarelos e podres. – Deus lhe proteja, filho.

- Amém.

Chico se foi em meio ao chuvisco. Olhei para o céu e ele seguia nublado, feioso, parecendo que a qualquer momento uma tempestade iria cair. O portão do cemitério foi fechado ruidosamente. Eu voltei para o interior da guarita e me servi do café. Conferi o horário. 18:04 e ainda era dia. Acinzentado, mas ainda assim era dia. Dei de ombros para essa situação e resolvi comer do bolo deixado pelo meu velho companheiro de trabalho. Bolo de cenoura com cobertura de chocolate, nada mal. Um pedaço pequeno, mas o que vale é a intenção.

- Me dá um pedaço?

Com meu coração querendo sair pela boca virei-me dando de frente com um menininho. Ele tinha o olhar triste e seu terninho estava sujo de lama.

- Como conseguiu entrar aqui? – engoli seco. – aonde estão seus pais?

- Eu não sei. – coçou a cabeça.

- De onde você veio? – nesse momento eu já estava apavorado.

- Dê lá! – apontou para a parte onde às crianças são sepultadas.

- Tem certeza?

- Sim! Aonde estou? – choramingou.

Eu estava tremendo de medo, confesso. Reparei bem naquele garoto e ele ainda trazia nas narinas os algodões. Ao perceber isso a minha vontade era de sair gritando dali, mas ao invés disso eu me belisquei.

- Tem que ser um sonho.

- O que está fazendo? – ele seguia me olhando de maneira soturna.

- Nada!

Lá fora tudo continuava como fora o dia inteiro. Ainda morrendo de pavor peguei minha lanterninha e meu canivete dentro da gaveta e sai.

- Fique aqui.

- Aonde vai? – perguntou quase chorando.

- Vou dar uma olhada por ai.

Ao girar o pescoço consegui visualizar alguém vindo entre os jazigos. Segurei firme o canivete e entrei. Fechei a porta da guarita enquanto o menino me olhava choroso. De repente as batidas. Batidas fortes. O meu pânico só crescia.

- Abra, por favor.

Olhei pela fenda da porta e vi um cidadão vestindo um terno barato azul escuro e com a pele em adiantado estado de decomposição. O odor quase me fez vomitar o bolo do Chico.

- Abra, por favor. Eu te vi entrar ai.

Comecei a rezar, a orar, sei lá mais o que. Eu não queria acreditar que um defunto estava de pé lá fora batendo na porta da guarita e o que é pior, havia outro lá dentro comigo.

- Por que não o deixa entrar? – questionou o garoto.

- Eu, eu, eu estou com medo. É isso.

- Medo do que?

- Estou com medo de vocês. – vociferei. – vocês deveriam estar mortos.

O menininho me olhou intrigado.

- Mortos? Como assim? – perguntou o defunto do lado de fora. – o médico disse que eu sobreviveria. Eu não estou morto.

Ele voltou a esmurrar a guarita. Eu segurei o canivete com firmeza, precisava agir rapidamente.

- Eu não estou morto! – berrava o zumbi lá fora.

Olhei outra vez pela fenda e vi que sua expressão já não era a de antes. Ele estava furioso. O garoto começou a chorar alto me levando a loucura.

- Fique quieto.

De nada adiantou pedir.

- Mais que merda, menino. Cale a boca.

Ele não me deu alternativa. Enterrei meu canivete em seu crânio e ele caiu ali mesmo. Voltei a olhar pela fenda e lá estavam outros mortos circulando pelo cemitério. Tive vontade de encravar o canivete em minha própria cabeça.

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