Os Mortos
Eu me
lembro bem daquele dia. Foi realmente terrível. Pra começar, justamente naquela
tarde eu não estava nenhum pouco afim de trabalhar. O dia havia amanhecido
cinza, muitas nuvens e um chuvisco que não parava de cair hora alguma. Pra ser
bem sincero estava bem frio na verdade, bom para ficar na cama tomando uma
deliciosa sopa. Fazer o que? Sou pobre. Possuo dívidas. Tenho que trabalhar. Arrumei
minhas coisas e fui.
Cheguei ao
cemitério por volta das 17:45, bem próximo do rendimento do vigia diurno,
Chico. Ao me ver cruzando os portões enferrujados o velho faltou me beijar de
alegria.
- Que bom
que chegou cedo. – me entregou às chaves. – que dia esquisito, não acha?
- Sim!
Bastante estranho. – olhei para o céu com nuvens carregadas. – já conferiu o
serviço de meteorologia?
- Não! –
voltou para a guarita. – fiz café e tem um pedaço de bolo na geladeira. Pode
comer se quiser.
- Valeu,
Chico.
O vigia
diurno pendurou sua bolsa surrada no ombro e olhou de maneira bastante
intrigante para o cemitério.
- Realmente
às coisas ficaram estranhas hoje, durante o dia todo. – fez o sinal da cruz.
- Está
falando sério? – peguei a garrafa de café. – o que houve?
- Sei lá!
Por diversas vezes senti que andavam entre os túmulos. – outra vez Chico fez o
sinal da cruz.
Sorri e
olhei para além do lugar.
- Não será
coisa da sua cabeça?
- Tenho 70
anos, mas não estou caduco. Ainda. – sorriu mostrando dentes amarelos e podres.
– Deus lhe proteja, filho.
- Amém.
Chico se
foi em meio ao chuvisco. Olhei para o céu e ele seguia nublado, feioso, parecendo
que a qualquer momento uma tempestade iria cair. O portão do cemitério foi
fechado ruidosamente. Eu voltei para o interior da guarita e me servi do café.
Conferi o horário. 18:04 e ainda era dia. Acinzentado, mas ainda assim era dia.
Dei de ombros para essa situação e resolvi comer do bolo deixado pelo meu velho
companheiro de trabalho. Bolo de cenoura com cobertura de chocolate, nada mal. Um
pedaço pequeno, mas o que vale é a intenção.
- Me dá um
pedaço?
Com meu
coração querendo sair pela boca virei-me dando de frente com um menininho. Ele
tinha o olhar triste e seu terninho estava sujo de lama.
- Como
conseguiu entrar aqui? – engoli seco. – aonde estão seus pais?
- Eu não
sei. – coçou a cabeça.
- De onde
você veio? – nesse momento eu já estava apavorado.
- Dê lá! –
apontou para a parte onde às crianças são sepultadas.
- Tem certeza?
- Sim!
Aonde estou? – choramingou.
Eu estava
tremendo de medo, confesso. Reparei bem naquele garoto e ele ainda trazia nas
narinas os algodões. Ao perceber isso a minha vontade era de sair gritando
dali, mas ao invés disso eu me belisquei.
- Tem que
ser um sonho.
- O que
está fazendo? – ele seguia me olhando de maneira soturna.
- Nada!
Lá fora tudo
continuava como fora o dia inteiro. Ainda morrendo de pavor peguei minha
lanterninha e meu canivete dentro da gaveta e sai.
- Fique
aqui.
- Aonde
vai? – perguntou quase chorando.
- Vou dar
uma olhada por ai.
Ao girar o
pescoço consegui visualizar alguém vindo entre os jazigos. Segurei firme o
canivete e entrei. Fechei a porta da guarita enquanto o menino me olhava
choroso. De repente as batidas. Batidas fortes. O meu pânico só crescia.
- Abra, por
favor.
Olhei pela
fenda da porta e vi um cidadão vestindo um terno barato azul escuro e com a
pele em adiantado estado de decomposição. O odor quase me fez vomitar o bolo do
Chico.
- Abra, por
favor. Eu te vi entrar ai.
Comecei a
rezar, a orar, sei lá mais o que. Eu não queria acreditar que um defunto estava
de pé lá fora batendo na porta da guarita e o que é pior, havia outro lá dentro
comigo.
- Por que
não o deixa entrar? – questionou o garoto.
- Eu, eu,
eu estou com medo. É isso.
- Medo do
que?
- Estou com
medo de vocês. – vociferei. – vocês deveriam estar mortos.
O menininho
me olhou intrigado.
- Mortos?
Como assim? – perguntou o defunto do lado de fora. – o médico disse que eu sobreviveria.
Eu não estou morto.
Ele voltou
a esmurrar a guarita. Eu segurei o canivete com firmeza, precisava agir
rapidamente.
- Eu não
estou morto! – berrava o zumbi lá fora.
Olhei outra
vez pela fenda e vi que sua expressão já não era a de antes. Ele estava
furioso. O garoto começou a chorar alto me levando a loucura.
- Fique
quieto.
De nada
adiantou pedir.
- Mais que
merda, menino. Cale a boca.
Ele não me
deu alternativa. Enterrei meu canivete em seu crânio e ele caiu ali mesmo. Voltei
a olhar pela fenda e lá estavam outros mortos circulando pelo cemitério. Tive
vontade de encravar o canivete em minha própria cabeça.
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