Zélia
despertou muito antes do horário habitual. Abílio roncava feito uma serra
elétrica a deixando irritada às sete e quarenta da manhã. No início do
casamento ela até que tolerava seus ruídos e chegava a tirar sarro deles, mas
com o passar do tempo e também com o aumento das discussões, os roncos e
flatulências se tornaram como que heresias no relacionamento. Lógico que não é
só isso que vem tirando sua paz, essas pequenas coisas podem e devem ser
resolvidas a base de uma boa taça de vinho e sim, uma conversa bastante
amistosa. A grande questão é que, Zélia Fontana já suportou coisas demais,
cedeu demais, engoliu sapos e pererecas demais, Abílio a fez extrapolar seus
limites e agora...
Como uma
boa dona de casa e esposa leal, ela faz das tripas coração para manter tudo na
mais perfeita ordem, como, por exemplo, preparar o café da manhã. Abílio
acordou logo em seguida, louco para esvaziar sua bexiga e quem sabe com muita
sorte saciar seu desejo de sexo matinal.
— Bom dia,
querida. Você já estava dormindo quando cheguei.
— Pois é,
comecei a ler e... — cruzou os braços aguardando a água ferver.
Fontana se
aproximou a tocando nas partes íntimas. Zélia tentou agir naturalmente, sem
esboçar nenhuma reação que desce sinal verde a investida do marido. Abílio por
sua vez, vendo o comportamento indiferente da esposa, a abraçou a fazendo
sentir todo o calor circular pelo corpo. A água entrou em estado de
ebulição copiando o clima entre o casal.
— Acho que
o café pode esperar. — ele desligou o fogo. — que tal voltarmos para a cama?
— Não vai
chegar atrasado no trabalho?
Abílio
despia sua mulher com habilidade e rapidez. Zélia ainda se encontrava
relutante, mas isso de forma alguma fez com que o policial desanimasse.
— Posso
inventar uma desculpa. — a beijou no busto.
Fontana
estava a ponto de possuí-la ali mesmo na cozinha com toda sua virilidade
enrijecida, porém, uma fala de Zélia o fez parar.
— E porque
não inventou uma desculpa quando estávamos de férias? — se cobriu.
Abílio se
afastou olhando para ela em silêncio. Nocaute! A melhor coisa a ser feita
nessas horas é evitar o confronto se retirando do campo de batalha.
*
Fátima
enviou as imagens da câmera de segurança como havia prometido e como prêmio
ganhou um novo encontro com o investigador. Por que esperar até o fim de semana
se eles podem facilmente encurtar essa espera? Se esforçando ao máximo para se
concentrar no trabalho, Abílio não tira os olhos do monitor um segundo sequer,
até mesmo para pegar a caneca de café ao lado ele faz uso de seu olhar periférico.
Zélia conseguiu destruí-lo. A passagem do tempo não tem feito bem para o
casamento deles. O café já havia esfriado na caneca quando finalmente ele viu
algo que arrancou sua esposa de seus pensamentos. Fontana pausou o vídeo e deu
um zoom. Um sujeito, bastante parecido com a última vítima, abandona sua mesa
para fazer companhia a uma mulher com uma cicatriz no rosto.
— Seria
você a minha assassina? — coçou o queixo.
Abílio
imprimiu algumas imagens, principalmente do rosto da mulher misteriosa e se
orgulhou disso. Ainda vislumbrado com o seu trabalho, Fausto Maia o surpreendeu
tocando-lhe nos ombros por trás.
— Desculpa
se te assustei. O que é isso, a nossa assassina?
— Tudo leva
a crer que sim.
Maia pegou
algumas das impressões e analisou.
— Agora que
temos nossa suspeita, vou atrás do Cianeto e aí...
— De volta
às férias. — Fausto estalou as falanges.
*
Cicatrizes
são mais que apenas marcas de um fatídico acontecimento. Elas são um registro e
lembrete de que você precisa fazer algo para compensa-las e isso Rose Maria
Silva tem feito. Ela se transformou num ser cruel, o passaporte dos traidores
de suas esposas direto para o inferno. Traidores não merecem piedade e nem
compaixão. Enquanto vida ela tiver esses desgraçados não terão vida fácil.
Rose Maria
deixou a caneca de chá em cima da cadeira na varanda e foi buscar o telefone no
quarto. Voltando para a área externa da casa ela pode conferir algumas notícias
no Twitter dando de frente com os casos os quais ela está envolvida até o
pescoço. A prisão da assassina do Cianeto é uma questão de tempo, segundo a
polícia. Todo criminoso sabe que um dia a sua casa irá ruir, um dia irão bater
na sua porta e lhe confrontar com os fatos. E aí? O que fazer diante de tudo
isso? Rose Maria sentiu tudo rodar ao seu redor a obrigando a se sentar. A
partir de agora é preciso ser um pouco mais cautelosa se ainda deseja seguir
punindo os desleais.
*
Abílio
desligou o motor do carro e depois olhou para as coxas de Fátima. Ela por sua
vez se manteve em silêncio.
— Devo
lembrar que sua ajuda fez com que minha investigação desce um salto. Muito
obrigado.
— Fico
feliz em saber que pude contribuir de alguma forma. — ela olhou ao redor. — eu
nunca estive aqui, que lugar é esse?
— Aqui é o
lugar onde nossos antepassados tiveram a inspiração ao dar o nome para a
cidade.
— Paraíso
Novo. — declarou Fátima encantada com a paisagem. — é lindo, uma pena que
poucos saibam disso.
— Uma pena
mesmo. E sabe porque eu lhe trouxe aqui? Você e o lugar combina perfeitamente.
A atendente
ruborizou na mesma hora.
— Meu Deus
do céu, jura?
— É sério!
Olha só quanto verde, olha o número de árvores, pássaros, só falta uma coisa.
Fátima
começou a transpirar.
— Faltam as
flores, por isso eu lhe trouxe aqui.
Eles ficaram
um certo tempo em silêncio. Abílio Fontana não tinha a menor ideia do que
falar, muito menos Fátima, porém foi ela quem deu o primeiro passo. O beijo era
para ser somente um selinho, mas o detetive queria muito mais do que apenas um
aperitivo. Eles se beijaram para valer.
— Nossa! —
ela disse. — preciso voltar.
— Quer que
eu te deixe aonde?
—
Ah! Pode ser no bar mesmo.
— Seu
expediente já não havia terminado?
— Sim, mas
acabei de lembrar que deixei meu uniforme sujo lá.
— Certo!
Mas, eu acho que vou querer mais um beijo desse.
— Aí, meu
Deus.
*
Fontana
ficou na vontade, ele bem que gostaria de mais um beijo antes que ela
desembarcasse, mas Fátima evitou contato o prometendo que o recompensaria mais
tarde. Abílio achou melhor não forçar a barra.
— Te ligo
mais tarde?
— Sim! —
ela respondeu.
O detetive
aguardou que Fátima entrasse no bar e só depois deu a partida. Pelo visto não é
a primeira vez que ele faz isso e m será a última. Abílio Fontana consegue se
envolver com amantes sem deixar que o coração se iluda, ele jamais se apaixonou
por nenhuma delas. Fátima infelizmente será mais uma que entrará para sua
coleção.
Certa
ocasião, quando estava a frente de um caso onde foi preciso marcar presença na
casa de uma testemunha por longos quinze dias, Abílio deixou-se envolver pela
mulher ameaçada ao ponto de quase engravida-la. Ninguém, além dos dois, ficaram
sabendo disso, nem mesmo Fausto que, sempre se mantinha por perto desconfiou.
Assim que Fontana conseguiu prender o bandido a mulher pode deixar a cidade.
Ela se apaixonou por ele, mas ele não, não mesmo.
*
Carlos e
Hortência Fontana moram juntos fora de Paraíso Novo. Decidiram seguir suas
vidas sozinhos independentes dos pais numa cidade considerada a maior metrópole
do país. Sempre foram bons filhos, obedientes e principalmente, nunca e em
tempo algum meteram o bedelho no relacionamento dos pais. Quando atingiram a
idade adulta, em comum acordo, decidiram deixar a barra da saia da mãe e do pai
para seguirem seus caminhos. Hoje eles são profissionais de respeito e graças a
Deus muito bem remunerados por isso.
— O que
acha de chegarmos lá de surpresa. — propôs Carlos parando o carro na vaga
exclusiva para funcionários.
— Seria até
legal, mas eu acredito que não é uma boa hora. — Hortência recolheu os
pertences no banco de trás. — papai e mamãe não estão vivendo uma fase legal.
— Verdade.
Melhor deixar que se resolvam primeiro.
— Quando
terminarmos aqui faremos uma chamada de vídeo para os dois, vai ser boa uma
reunião em família, tem muito tempo que não fazemos isso, não é? — Hortência
abriu a porta.
— Legal.
Gostei da ideia.
*
Isso
aconteceu faz algum tempo e para falar a verdade, Rose Maria não faz questão
alguma de saber com exatidão quando ocorreu. Doeu muito. Ela sofreu demais,
tanto por dentro como por fora. Paulo Augusto a humilhou ao ponto dela ficar
dias sem dormir e sem comer direito.
Rose Maria
assistia ao seu programa semanal predileto na TV quando ele chegou embriagado,
destilando seu veneno pelos cantos da boca. Paulo Augusto havia passado o dia
inteiro fora de casa e quando voltou, trouxe com ele o ódio e a vontade de
destruir o coração de quem não merecia.
— E aí,
piranha, acabou com a minha cerveja? — perguntou com voz pastosa.
— Você sabe
muito bem que eu não bebo. — seguiu com os olhos na programação.
— Eu
comprei um engradado no início da semana e agora não há uma lata sequer na
geladeira. Você bebeu todas.
— Paulo,
por favor, será que você pode me deixar em paz pelo menos hoje?
O covarde
fechou os punhos e sem pensar nas consequências partiu para cima da própria
esposa deferindo-lhe socos e pontapés em sequência. Rose Maria tentava
desesperadamente se desvencilhar dos golpes pedindo por ajuda. Um dos murros a
acertou em cheio na têmpora a deixando fora do ar sabe-se lá por quanto tempo.
Porém, ele a despertou com algo que a deixaria marcada pelo resto da vida.
— Seu
maldito, você vai pagar caro por isso. — gritou sentindo e ouvindo o pedaço de
seu rosto fritando no ferro de passar.
O riso de
Paulo enquanto ela tremia de dor e raiva só ajudou a alimentar o que já pulsava
dentro dela. Nada como uma boa e velha vingança, ele não perdia por esperar.
Finalmente, após anos de humilhação e agressões, Rose Maria Silva abriu a boca
e não foi para chorar ou questionar a atitude do marido.
— Eu vou te
matar.
Paulo
Augusto colocou a mão atrás da orelha desdenhando.
— Como é
que é? Eu não ouvi direito.
— Eu vou te
matar. Pode não ser hoje ou amanhã, mas, cedo ou tarde eu vou te mandar pro
inferno. — falou bem devagar, remoendo cada palavra.
O ferro
ainda fritando o pedaço de carne foi deixado no chão. Paulo Augusto não dormiu
em casa naquela noite. Rose Maria permaneceu sentada no sofá se nutrindo de
cada sentimento ruim que lhe era acometida. Ela até pensou em procurar um
hospital, mas decidiu se tratar em casa mesmo. Ligou para uma farmácia e
enquanto aguardava a chegada dos medicamentos ela se propôs a chorar.
*
Fátima bem
que gostaria de parar e recuperar o fôlego, mas o desejo de se entregar é maior
que ela. Abílio consegue sentir na pele todo o poder e sedução da mulher
sentada em seu colo. O lugar é apertado e a todo instante a buzina do carro é
acionada tirando deliciosas gargalhadas da mulher.
— Está
vendo? Esse é o mal de ser grandona. — falou se ajeitando.
— Não vejo
mal nenhum, fartura nunca é demais. — apertou suas nádegas. — e aí, o que achou
do velhinho aqui?
— Ah! Eu
nunca duvidei do seu potencial. — voltou a ocupar o banco do carona.
— Para onde
quer ir agora?
— Pode me
deixar lá no condomínio.
Em
silêncio, o investigador subiu o zíper e apertou o cinto. Feito isso ele olhou
nos olhos dela e a surpreendeu com uma pergunta.
— Seu
marido já desconfiou de algo?
Fátima se
sentiu num beco sem saída e mesmo assim ela ainda tentou escapar do confronto.
— Meu
marido, que marido?
— Por
favor, não tente me enganar, tá na cara que você é casada, sou policial
esqueceu?
— Andou
investigando minha vida? — cruzou os braços visivelmente aborrecida.
— Não foi
preciso.
— Como
assim? — Fátima estava ofegante.
— Você não
mora naquele condomínio, na verdade, você não quer que eu saiba onde você mora
de fato.
— Meu Deus!
— riu de nervoso.
— Já que
estamos tendo essa conversa vou lhe confessar algo. Eu também sou casado. E
agora, o que você me diz?
— Não sei o
que dizer. Estamos cometendo um erro gravíssimo. O certo era pararmos aqui e
fingir que isso nunca aconteceu.
— É isso
mesmo o que quer? — Abílio segurou em suas mãos.
Fátima não
o respondeu. A paixão a pegou e agora ela não consegue mais pensar em outra
coisa. Seu relacionamento com o marido é algo complicado, do tipo que existe
tudo ali menos amor e cumplicidade.
— Tudo bem.
Vou levá-la para casa. Ou melhor, na porta do condomínio. — girou a chave.
Casa vez mais interessante.
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