segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Resposta de Oração

 



Resposta de Oração.

 

 

 

 

No papel o horário da consulta está marcada para às 10 horas, mas isso só teoricamente falando. Paulo conhece bem o sistema de saúde e sabe melhor do que ninguém que não conseguirá sair daquela clínica antes das 14 horas. Paciência. Ele só lamenta pelo o último da lista que no caso trata-se de um senhor negro bastante debilitado acompanhado por sua filha ou neta.

Lá pelas tantas Paulo ouviu a voz da recepcionista o chamando com toda simpatia do mundo, para dizer ao contrário.

— O senhor já pode entrar.

O médico, um jovem moreno claro com idade suficiente para ser seu filho o recebeu com um sorriso bastante cansado. Sentado estava, sentado permaneceu.

— Vamos chegando, senhor Paulo.

— Boa tarde, doutor. — ocupou a cadeira.

— Certo! Vamos lá então.

O profissional de saúde pegou o papel do exame e o analisou novamente, porém, dessa vez na presença do paciente.

— Infelizmente às notícias não são boas, seu Paulo. — alisou a rala barba.

— Sério? — torceu a boca.

— Sério! O senhor terá que começar o tratamento com urgência. Infelizmente a doença não é incipiente. Vou recomenda-lo ao oncologista. Não se preocupe, vai dar tudo certo.

Paulo abaixou a cabeça. Na mesma hora ele viu um filme passar bem diante de seus olhos.

— Misericórdia!

Na volta para casa, enquanto aguardava a chegada do coletivo e se segurando para não cair no choro bem ali no meio da rua, Paulo repassou sua vida inteira, desde quando começou a sentir os primeiros sintomas. Os homens em si são bem diferentes das mulheres. Ir ao médico parece ser uma missão impossível para a maioria deles. Ah se ele tivesse dado ouvidos a sua esposa há dois anos atrás. O quadro seria outro, com certeza.

O ônibus parou uns vinte metros a frente de onde o pedreiro estava, mas ele não reclamou. Seu estado naquele momento pedia paz e reflexão. Graças a Deus havia alguns lugares desocupados e Paulo pode se acomodar e chorar tranquilamente. Ele aproveitou para por sua conversa com Deus em dia.

— A luta será grande a partir de hoje. Peço que o Senhor permaneça comigo nessa labuta. Amém!

*

Quarenta e cinco minutos depois Paulo chegava em casa onde Marlene, sua esposa o aguardava já preocupada.

— Meu Deus, homem, que cara é essa? — perguntou parada perto da janela.

Paulo não conseguiu respondê-la, o choro do esposo a deixou ainda mais aflita.

— Jesus! Sério?

Paulo estendeu a mão segurando o envelope com o resultado do exame.

— Aí, Paulo, meu amor, eu te avisei tanto. — o abraçou e o beijou.

Nessas horas alguém precisa estar forte e Marlene cumpriu bem esse papel. Ela conhece seu marido mais do que ninguém e sabe o quanto ele gosta de lutar, trabalhar, prover para a família.

— Vem! Vou passar um café pra você.

Quando a noite chegou e estavam todos reunidos jantando, o chefe da casa aproveitou a ocasião para informar aos filhos sobre seu estado de saúde contrariando a vontade de Marlene.

— Diz aí, meu pai, o senhor não falou o jantar inteiro, o que aconteceu? — falou o filho do meio.

— É mesmo, pai, o senhor está muito calado pro meu gosto. — completou a caçula.

A vontade de chorar foi absurdamente controlada pelo pedreiro. Sentindo o clima, Marlene segurou em sua mão por baixo da mesa.

— O pai de vocês está doente. — começou Paulo. — fui pegar o resultado dos exames e...

— É aquela doença, pai? — perguntou o filho mais velho.

Dessa vez não deu para aguentar. Paulo caiu num pranto compulsivo e precisou ser consolado rapidamente por Marlene e sua caçula. O jantar estava arruinado.

— Temos a obrigação de estarmos juntos com o papai nessa luta. Certo? — decretou Marlene.

Todos assentiram.

— Obrigado, família. — disse limpando às lágrimas. — Deus não nos daria algo que não pudéssemos suportar, então...

— O senhor é o nosso herói, pai. — declarou o primogênito. — vamos passar por isso juntos e sem murmurar.

Foi difícil, mas o pedreiro conseguiu sorrir perante a fé de Júnior. Só agora ele tomou ciência da grandiosidade do homem que pôs no mundo.

— É isso aí! Vamos terminar o nosso jantar e vida que segue. — finalizou Marlene.

*

E a luta de Paulo começou pra valer. Idas e vindas do hospital. Tratamento pesado. Psicológico bastante afetado. Efeito colateral castigando e tudo isso tendo que trabalhar sem perder a fé. Fé é sim algo importante. Todas às noites, antes de dormir, ao pé da cama o casal se ajoelha para orar.

— Amém! — Paulo finalizou a oração em voz alta. — é minha velha. Amanhã é o dia.

— Tenho certeza que o tratamento já deve ter combatido essa enfermidade.

— Eu estou otimista.

Na recepção aguardando sua vez de ser atendido Paulo e sua esposa conversam sobre fatos inesquecíveis do passado, principalmente o dia em que ele precisou ir até a casa dela pedi-la em namoro.

— Você estava pálido. — riu.

— Qualquer um ficaria. O velho Sebastião era casca grossa.

— E se ele soubesse que a gente já tinha se deitado antes... Nossa, não gosto nem de pensar.

Paulo arregalou os olhos.

— Quer dizer que seu Tião morreu achando que a filha dele se casou virgem?

 Marlene ruborizou o rosto e riu.

— Eu contei para minha mãe, mas quer saber? No fundo ele sabia das nossas artes.

A voz da recepcionista atravessou a resenha do casal.

— Fé em Deus! — falou Marlene.

Paulo e Marlene lado a lado. A frente dos dois um médico analisando os papéis demoradamente. Por dentro o pedreiro sentia suas vísceras brigarem. Ele não se conteve.

— Não quero que me esconda nada, doutor.

Os óculos de leitura foram retirados do rosto e deixados em cima da mesa, Paulo acompanhou todo esse processo em câmera lenta, tudo isso do seu ponto de vista.

— Sem resultado satisfatório. — despejou o médico.

Marlene sentiu uma forte tontura.

— Temos que recomeçar todo o tratamento.

O medo se transformou em desespero e depois num pânico ao ponto de Paulo não conseguir ficar sentado.

— Paulo? — disse Marlene tentando o segurar.

Já era! Pensou olhando para os papéis nas mãos do médico.

— Seu Paulo, o senhor tem todo o direito de se sentir assim, mas como profissional de saúde lhe peço que confie, nos dê essa chance.

Meu Senhor! Tudo de novo. Náuseas, dores, mal-estar, estou perdendo meu cabelo.

— Meu amor! — chamou Marlene. — sua família está com você, lembra? Sente-se, vamos ouvir o que o doutor tem a dizer.

O médico reiniciou sua fala, mas Paulo não ouviu um minuto sequer de seu discurso. Sua cabeça voava por um mundo escuro, sombrio e vazio. Recomeçar o tratamento não fazia parte dos planos. Assim que ele saiu de seu devaneio lúgubre, de forma impetuosa ele ergueu o dedo interrompendo a fala do médico.

— E se ao final do tratamento o resultado for o mesmo?

O oncologista engoliu seco.

— Não terá mais jeito, não é? Pode falar, doutor Clóvis. — rosnou. Marlene interveio.

— Terá jeito sim. Não é, doutor? — ela tinha os olhos marejados.

— Sinceramente não estou preocupado com isso, eu...

Paulo o interrompeu novamente.

— Mais é claro que o senhor não estar preocupado com isso. Não será você a bola da vez. Não é?

— Peço que se acalme, senhor Paulo, sei bem como é isso, meu pai teve câncer e...

— E cadê ele?

Silêncio! Marlene conseguia ouvir os batimentos cardíacos de ambos nesse instante.

— Seu pai, doutor Clóvis, cadê ele? O senhor conseguiu salva-lo?

A dona de casa segurou firme o braço do esposo e colocou um ponto final naquela discussão.

— Doutor Clóvis, peço perdão pelo meu marido e quero lhe afirmar que iremos sim, passar por mais essa.

— Ótimo!

*

Paulo foi acometido por um pesadelo aonde seu corpo era corroído por uma espécie de vermes. Indefeso, ele só gritava desesperadamente acordando Marlene a seu lado no meio da noite.

— Paulo?

Aos poucos ele foi sendo retirado do sonho tenebroso abrindo os olhos bem devagar.

— Você soltou um grito horrível. — Marlene se sentou na cama. — vou buscar água.

— Tive um pesadelo terrível. — envolveu-se no edredom. Paulo estava bastante constrangido.

Foi um sonho ou realidade? Passar por todo o tratamento outra vez é como viver uma mentira. Uma mentira cruel demais. Quem séria capaz de suportar essa angustia pela segunda vez? Marlene voltou da cozinha com a água. Ela também tem sofrido bastante, isso é visível aos olhos de quem a conhece bem e o que é pior, tem aguentado tudo calada.

— Toma!

— Obrigado! — tomou tudo de uma só vez. — o que seria de mim se não fosse você em minha vida, meu anjo?

A dona da casa ocupou o seu lado na cama e o aninhou em seus braços.

— Ah se não fosse o Senhor em nossa vida. Como seria? — declarou Marlene.

— Verdade! Posso te pedir uma coisa? — perguntou olhando para o copo.

Aí meu Deus, não acredito que esse homem vai querer namorar agora. Pensou sorrindo.

— Cante pra mim.

— Quer que eu cante agora, às três da manhã? — Marlene ainda o tinha nos braços.

— É! Bem baixinho, só pra mim. Aquele hino, “Sou feliz” ele fica ótimo na sua voz.

Marlene cantou e não só isso. Ela fez com que sua voz brotasse de dentro do coração, da alma. A canção surtiu efeito tranquilizando o espírito de Paulo que adormeceu antes do término do hino.

— Amém! — disse ao final do cântico.

*

O tempo parece não passar para quem se encontra vivendo tal experiência. As idas ao hospital se tornaram rotineiras no dia a dia do pedreiro. Às quedas de cabelo incomodam bastante e por isso ele fez questão de acelerar o processo raspando a cabeça e assumindo de vez a sua condição. Em apoio ao pai guerreiro, seu filho mais velho também raspou tudo levando Paulo às lágrimas ao vê-lo daquela maneira.

— Eu te amo, meu filho. — o abraçou.

— Também te amo, coroa. — o beijou na careca.

Marlene, muito emocionada, os deixou a sós na sala correndo para o quarto para se derramar de vez.

— Senhor, eu não entendo. A vida estava boa. Por que essa adversidade agora, nessa altura da vida? — disse deitada na cama com o travesseiro no rosto.

Daí pra frente Paulo foi ficando ainda mais debilitado, já não tinha forças para trabalhar sendo castigado pelos medicamentos e também pelo seu psicológico que já havia ido para o espaço há muito tempo. A presença da morte era cada vez mais evidente. Marlene se via num túnel sem a luz no final.

*

Paulo estava sofrendo. Sofrendo muito. O ser humano tem uma capacidade incrível de se adaptar o qualquer tipo de situação e circunstância. Os medicamentos não estavam surtindo efeito e a sentença foi dada. Dentro de muito em breve o chefe da família Barbosa estaria morto e por incrível que pareça Paulo não se abalou ao ouvir tal declaração do especialista.

— Sinto muito, senhor Paulo. Essa doença é agressiva e no seu caso pior ainda.

— Não sinta, doutor. Todos nós iremos morrer de alguma coisa, então...

Nesse momento o oncologista deu uma rápida olhada em Marlene que seguia com seu olhar perdido. Ela não estava chorando e nem com o semblante abatido o que causou estranheza ao médico.

— Posso lhe recomendar um psicólogo, senhora Marlene?

A esposa de Paulo encontrava-se tão imersa em seus pensamentos que não ouviu o médico falar. Paulo a tocou no braço.

— Oi?

— Vou lhe recomendar um psicólogo. Alguma objeção?

Ela olhou para o marido que anuiu.

— Faça o que achar melhor.

Uma casa com sua estrutura totalmente abalada. Toda enfermidade causa isso. Quem está doente de forma direta sofre duas vezes; sofre os efeitos da doença e sofre por ver seus familiares perdendo a saúde tanto física como mental. Em seus raros momentos sozinho, tudo o que Paulo consegue pedir a Deus é força para sua mulher e filhos durante e após a sua partida.

— E aí, coroa? — Junior entrou no quarto. — está precisando de alguma coisa?

— Não, meu filho, obrigado.

— Tem certeza?

— Tenho. Venha aqui, deite-se só um pouco.

Paulinho estava com o seu horário apertado para um compromisso, porém nada era mais importante que ficar ali ao lado do seu herói.

— Como vão às coisas? — acariciou a barba do filho.

— Estão complicadas. Faculdade exige bastante. — se encolheu.

— E a Patrícia, vocês estão bem? — seguia mexendo no rosto de seu primogênito.

— Tivemos uma pequena briga, mas ficou tudo bem.

Paulo tirou a mão da cabeça e a pôs no ombro. Seu semblante já não era tão sereno.

— Paulo Barbosa Junior. Escute bem o que vou falar. Quero que prometa uma coisa.

Paulinho se ajeitou.

— Quero que cuide de tudo. Não abandone sua família. Seja homem. Não troque Cristo por nada nesse mundo. Entendeu?

— Sim, pai, mas...

— Você me entendeu? — vociferou e apertou com mais força o ombro do filho.

— Pode deixar.

O fim estava se aproximando? Aquilo foi uma despedida seguida de uma ordem? Fosse o que fosse, Junior não se acha pronto para assumir às rédeas da casa. Nada como um amadurecimento forçado para que uma pessoa veja a realidade com outros olhos.

*

Marlene descansava às pernas depois do almoço deitada no sofá mexendo no celular. Paulo curtia o seu mal-estar esparramado na cama do quarto exigindo de Deus a sua retirada da terra o mais rápido possível. Eu não aguento mais, Senhor.

Marlene ouviu quando a porta do quarto foi fechada e não só isso, seu marido a trancou. Meu Deus! Lá dentro, depois de um esforço absurdo, Paulo conseguiu se ajoelhar e só após a volta do fôlego o pedreiro iniciou sua oração.

— Eu sei que o Senhor tem um propósito para cada um ser vivo nesta terra e cabe a nós descobrir e seguir esse propósito. Eu descobri o meu e...

Marlene bateu na porta.

— Amor, você está bem?

Paulo seguiu com a oração.

— Sou grato por tudo o que fez por mim. Reconheço seu sacrifício e sei que tudo o que fez foi para nos dar vida. Vida bastante. Por isso peço ao Senhor essa vida.

— Paulo? — bateu na porta duas vezes. — posso entrar?

— Me abençoe com a cura. Eu estarei fazendo uma nova avaliação na próxima semana. Que ao analisar os exames o doutor Clóvis seja surpreendido. Mas tudo isso se for de sua vontade. Que a tua vontade prevaleça sempre.

— Paulo! — gritou.

A porta do quarto foi aberta abruptamente.

— O que foi, mulher, eu estava orando. — Paulo transpirava.

— Ah, sim! Me desculpa. — ruborizou.

— Entre! Você não sabe o que aconteceu. — a segurou pela mão. — Fui curado!

Marlene engoliu seco.

— Eu estou curado, Marleninha. — abriu os braços.

O casal se abraçou. Juntos choraram até perderem às forças. Marlene sempre foi uma mulher que, por mais que as circunstâncias digam que não há mais jeito, ela nunca foi de entregar os pontos facilmente. Enquanto há vida, há esperança. Ao abraçar seu esposo ela sentiu o seu coração bater diferente. Havia realmente acontecido algo entre aquelas paredes e somente Paulo poderia descrever.

— Curado, mesmo? — perguntou limpando às lágrimas.

— Sim! Sou um novo homem. Doutor Clóvis não vai saber o que dizer.

— Assim seja!

*

Clóvis é médico a um pouco mais de dez anos e em todo esse tempo ele jamais deu diagnóstico equivocadamente ou deixou de buscar por resultados satisfatórios. Assim que chegou a clínica naquela manhã, estranhamente seu coração batia mais rápido do que o comum e sua mente não o deixava em paz o fazendo lembrar da vinda de seu paciente mais ilustre. Paulo Barbosa.

O oncologista deixou seu consultório e andou até a recepção meio que no automático. As pessoas que ali estavam olhavam para ele atônitas, até mesmo a recepcionista se espantou.

— Deseja alguma coisa, doutor Clóvis?

— Não, não. — olhou para a porta de entrada da clínica. — pode mandar o próximo paciente.

Uma hora depois desse ocorrido, Clóvis recebia em sua sala Paulo e Marlene. O tempo todo a dona da casa segurava a mão do esposo já fragilizado. Apesar da magreza e aspecto não muito agradável, o pedreiro possuía uma leveza no semblante. Clóvis não estava entendendo absolutamente nada.

— Bom! Vamos aos exames. — falou sem sorrir. — eu não os analisei ainda.

Marlene sobressaltou.

— Não? Como assim, doutor?

Clóvis ruborizou na mesma hora.

— Eu não sei o que aconteceu. De repente decidi deixar para fazer na frente de vocês.

Marlene olhou de soslaio para Paulo que seguia encarando-o. Clóvis abriu o envelope e puxou o documento e o leu atenciosamente. O consultório ficou num silêncio sepulcral até a voz embargada do médico pairar.

— O câncer sumiu.

Paulo e Marlene se entreolharam.

— Viu? Eu te disse. — declarou Paulo com ar de riso.

Marlene precisava explodir e explodiu. Seu choro chegou aos ouvidos de quem estava na recepção. Doutor Clóvis também foi acometido pela mesma emoção enquanto que Paulo sorria olhando para os dois.

 

Nota do autor: Esse conto foi inspirado no testemunho dado pelas irmãs Nora Pais, Ester Saloto, Cátia Cilene, Miriam e Marilene.

 

 

 

 


6 comentários:

  1. Parabéns, texto muito bem elaborado

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  2. Você sempre nos surpreendendo. Feliz 2024, meu amigo! Muitas bençãos na sua vida ✨

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  3. Deus é perfeito. Lindo texto

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  4. Dando uma passada por aqui e lendo seus textos… muito bonitos. Parabéns

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