FERAS AMIGAS
Conto Policial com Luís Souza
A corrida é atrapalhada. Os pés vacilam. O coração bate na garganta e o medo foi vencido pelo pânico. Ele não olha para trás e nem é preciso se dar a esse trabalho, os latidos já o alertam que daqui a alguns instantes não sobrará nada dele. Mesmo assim ele segue correndo. O suor que escorre da testa até seus olhos arregalados ajudam a piorar as coisas ao ponto dele não conseguir ver a cerca de arame farpado a sua frente. O homem ainda tentou frear, mas já era tarde. Maldita cerca. Agora os latidos estão mais pertos e já é possível ouvir os rosnados também. Toda sua roupa está enroscada, assim como sua pele. Ardência, incômodo, raiva, tudo isso ele sente e até um pouco mais.
— O que será de mim, Cristo?
O arame pontiagudo e enferrujado entra sem piedade alguma nos dedos e nas palmas das mãos na tentativa de desenroscar sua calça, porém o sangue não permite que ele faça um bom trabalho. O lugar é escuro, escuro até demais e também abandonado. Lá vem eles, os cachorros, os cães do inferno, salivando e para piorar, são dois. Duas feras famintas.
— Socorro, alguém me ajuda! — berrou.
Antes da chegada dos animais é possível ver a aproximação de um homem segurando duas coleiras. Quem seria ele? O primeiro a atacar é o marrom. O preto parou sob o comando da voz grave de seu dono.
— Aguarde sua vez, Hulk.
A mordida é forte na coxa direita. Por mais que ele bata na cabeça do bicho, os caninos entram com facilidade em sua carne rompendo tecidos e vasos. O sangue jorra manchando o focinho. Sem esforço algum o cachorro lhe arrancou um generoso pedaço de carne junto com o jeans da calça. O outro cão espera sem muita paciência a sua vez de atacar enquanto que seu companheiro de coleira desfere outra potente mordida na mão. Assim que os dedos anelar e mínimo são finalmente separados, o cachorro preto pode ouvir a ordem de ataque.
— Vai lá, Hulk!
Hulk é ainda mais violento, mais selvagem, o reflexo de sua mordida foi tão poderoso que dilacerou o antebraço deixando o rádio à mostra. O homem soltou um grito gutural assustando até o dono dos cães que pensou em sacar a pistola do cós atrás da calça. A vontade de sobreviver é tanta que, com um impulso, ele se livrou do arame. Começou a correr sentido a mata. A dor e a fraqueza pela perda de sangue o fez cair facilitando a vida de seus algozes caninos. O marrom o mordeu no ombro e o preto continuou sua briga mastigando a outra mão. A poucos metros de distância está o sujeito, segurando as coleiras, observando com seu olhar triste a diversão de seus animais. Ele cruza os braços, aguarda com paciência o término do jantar. Outra vez o homem grita quando seu pescoço é quase arrancado. Mesmo sem lua e a noite esteja escura, é possível ver o chafariz rosado causado pelo rompimento da jugular. O dono dos cães olha para aquilo e não esboçou qualquer emoção, não movimentando um músculo sequer do rosto. Ele apenas olha. Aos poucos o homem vai parando, seus movimentos agora são mais espaçados.
— Comam tudo!
Cansado de ficar em pé, ele se agachou, mas antes tirou do bolso da frente da calça o seu maço de cigarros. Do bolso da camisa o seu isqueiro. Acendeu o principal causador de sua morte daqui algum tempo se ele não parar e olha que ele já tentou parar algumas milhares de vezes. Quando perguntado se é viciado em cigarros, ele sempre responde com a mesma brincadeira.
— Sou viciado em tentar parar de fumar.
Os cachorros já estão satisfeitos. O homem já é falecido. Seu estado é lastimável. Uma mão faltando os dois últimos dedos. Pescoço esburacado e ainda jorrando sangue. O braço direito todo mordido, todo mastigado. Enfim. Uma cena digna dos filmes de carnificina. Ele sorveu a fumaça e chamou os animais.
— Hulk, Hércules, vem!
Os cachorros são obedientes. Mesmo querendo terminar o serviço, eles deixam o jantar e se juntam ao dono que os prende. Andando até o corpo, ou melhor, até aquele monte de carne viva, ele soltou a fumaça e jogou o cigarro fora. Parou bem perto do cadáver. Quanta sujeira. Seus olhos caídos fixam o olhar de medo do morto. Em respeito à pobre alma, ele faz o sinal da cruz pedindo a Deus que lhe dê bom lugar. Obrigação feita, ele dá às costas e se volta para os seus bichinhos de estimação.
— Vamos agora rapazes.
*
Souza pede mais um beijo. Soraia até quer lhe dar outro, mas o relógio a faz lembrar que ela precisa sair daquele carro antes que o sinal soe.
— Preciso ir agora, amor.
— Tem certeza de que quer realmente me substituir por crianças arteiras?
— Não, mas, são às crianças arteiras que pagam o meu aluguel todo mês. — o beijou.
O policial a segurou pelo rosto e ela cedeu. Beijo demorado e apaixonado, cheio de segundas intenções. Soraia se afastou antes que fosse tarde.
— Socorro! — se abanou.
— Nos vemos mais tarde?
— Lógico! — abriu a porta ainda ofegante.
De dentro do carro o detetive a viu se distanciar e seu coração reclamou de saudade. Coisa muito boa o que ele vem sentindo desde quando se conheceram naquele supermercado. Soraia Rodrigues, professora do ensino fundamental de um colégio particular na zona oeste de Norma. Que mulher sensacional. Luís se arrisca em dizer que, ela o faz esquecer de Suzana e olha que sua ex é inesquecível. Na verdade, o investigador já havia esquecido essa fase que é importante para todo e qualquer ser humano. Se apaixonar. Deixar com que uma outra pessoa ocupe aquele espaço reservado para esse fim no coração. Souza se pega sorrindo sozinho, vibrando dentro de seu veículo. A saudade aperta ainda mais quando Soraia, antes de desaparecer no portão, lhe dá um adeus. Souza buzina. Ela entra. O portão se fecha. Seu peito queima.
Soraia chegou na hora certa na vida do policial. Souza havia discutido ao telefone com Suzana sobre o comportamento de Jeferson nos últimos dias. Suzana fez questão de culpa-lo.
— Quando foi a última vez que você ligou para ele? — perguntou aos berros.
— Não precisa gritar.
— Ele está igualzinho a você e não é só na aparência.
— Veja bem. Vou até aí no final de semana. Teremos uma longa conversa.
— Ótimo!
Suzana desligou. Souza sentiu vontade de arremessar o celular contra a parede. Sempre que a raiva passa, a tristeza lhe faz companhia. Tristeza. Sua velha e boa amante. Sempre ela. Souza foi até a geladeira e não havia mais cerveja.
— Tudo jogando contra.
Luís Souza tinha acabado de chegar do departamento e ainda estava com a roupa a qual passou o dia inteiro. Calça social preta, sapatos também pretos perfeitamente engraxados e camisa gola pólo cinza. Ele pegou seu distintivo e sua Glock em cima da mesa de centro e saiu. O supermercado não fica tão longe, mas também não dá para ir a pé. Souza entrou no estabelecimento e andou com pressa até a seção de bebidas e lá estava ela. Soraia conferia o valor do vinho. Luís esqueceu a pressa ao se deparar com a morena clara, cabelos longos, soltos, rosto oval e um corpo pra lá de exuberante. A cerveja pode esperar. Ela olhou para ele. O detetive precisava manter o contato, por isso disfarçou.
— Boa noite, vi que você estava vendo o preço do vinho e qual seria o ideal para uma receita? — o sorriso de Souza era iluminado.
Soraia olhou para a prateleira e pegou uma garrafa.
— Bom, se for carne, esse é o melhor.
— Legal, é carne sim.
— Eu também gosto de usar vinho para cozinhar, mas no fundo, eu gosto é de uma bela taça. — riu.
A conversa se estendeu por mais alguns minutos. Ela foi para um lado e ele para o caixa. Eles voltaram a se encontrar na saída. Ela acenou de longe.
— Bom jantar!
Souza olhou e viu que ela segurava duas sacolas razoavelmente cheias.
— Você está indo para qual lado?
— Antigo armazém de Norma.
— Vamos, te deixo lá é caminho pra mim.
Souza deu graças a Deus por conseguir manter sempre o interior do carro em ordem. A primeira impressão é sempre a que fica. Costumam dizer que, para conhecer bem um homem, basta olhar como ele trata o seu carro. Soraia se acomodou no banco do carona e se sentiu em casa.
— Sou Luís, Luís Souza. — estendeu a mão.
— Soraia Rodrigues, encantada.
Enquanto dirigia e a ouvia falar, Luís pôde notar que ela não é só uma mulher bonita. Soraia possuí uma inteligência peculiar, ela pensa fora da caixa digamos assim. Linda, corpo bonito e incrivelmente inteligente, Souza não precisava mais do que isso para ser feliz. A conversa estava tão interessante que ele quase passou da entrada.
— Valeu pela carona. Detetive.
— Eu que agradeço, professora. — riu.
O dia do policial não começou lá essas coisas e foi piorando com o passar das horas. Mas, a vida sempre reserva uma surpresa, um escape. As oportunidades são raras, porém surgem para todos, basta estar preparado. Souza estava mais do que preparado. Ele não poderia deixar Soraia sair daquele carro sem antes lançar sua rede. O que está esperando, cara? Ela está indo embora.
— Quando nos veremos outra vez? — falou de maneira rápida.
— O que disse? — pegou as sacolas.
Suas mãos transpiravam e Souza apertava com força o volante. O que há de errado com você? Fica frio, cara.
— Quando nos veremos de novo?
— Ah, não sei, eu não vou muito ao supermercado. — brincou. — me liga.
Ele ligou. Depois de dois dias Luís ligou para Soraia e por fim teve uma resposta positiva e ele entendeu sua resistência inicial. A professora estava saindo de um casamento bastante conturbado e a princípio ela não queria se envolver com ninguém. O primeiro encontro foi como amigos. Souza a levou para comer pizza e tomar vinho. Soraia adorou o encontro, foi uma noite divertida. No segundo encontro às coisas começaram a mudar e não foi só com relação ao restaurante. Luís Souza estava decidido a conquistá-la de vez e por isso investiu tudo o que tinha. O beijo aconteceu no portão da casa da professora. Isso foi há dois meses e de lá pra cá só tem melhorado. Souza é outro homem.
*
Um grupo de meninos jogam futebol no que sobrou do gramado de uma propriedade privada. Sim, existia um pequeno campo ali, com traves feitas de madeira e redes já deterioradas pela ação do tempo. Quando o terreno foi adquirido pela fábrica de embalagens plásticas o campinho que outrora era o Point certo dos meninos aos finais de semana, deu lugar a um imenso galpão de armazenagem. Na época houve um pequeno desentendimento, pessoas fizeram um abaixo assinado, mas de nada adiantou. Agora os garotos precisam disputar espaço com o mato alto e o cercado se quiserem se divertir batendo uma bolinha. Um deles chutou um pouco mais forte e a bola ultrapassou os limites do terreno indo parar no barranco. O mesmo foi forçado a buscá-la. Com muita má vontade ele desceu o tal barranco onde observou a presença de vários urubus amontoados.
— Galera, tem um bicho morto aqui. — gritou.
A curiosidade do menino o fez esquecer o objeto e caminhar até às aves. O odor era insuportável. Não se tratava de um animal morto e sim de um homem. O susto foi tão grande que o garoto caiu para trás gritando pelos outros.
— Socorro, tem um homem morto aqui.
Uma hora depois aquele lugar se transformou em um verdadeiro estacionamento de viaturas da polícia e com homens fardados e armados circulando entre eles. Souza e Márcia também marcavam presença. O detetive olhava para o corpo quase que em pedaços, largado de qualquer jeito no meio daquele mato como se fosse um saco de lixo podre. Diversas coisas passam por sua cabeça, desde um assassino frio, um psicopata até um animal feroz ou...
— Não está achando que foi um lobisomem quem fez isso, não é? — Márcia deu um ar de riso.
— Fale isso baixo, vão achar que você ficou louca de vez. Vamos cair em descrédito.
— Há sinais de mordidas, iguais aos dos outros corpos que encontramos. — Márcia lhe entregou uma foto do caso anterior. — Veja, mordidas nas duas mãos, membros inferiores, no rosto, pescoço, nesse foi ainda pior, a carne foi mastigada.
— Seria isso um caso para polícia ou devemos chamar um caçador de feras da floresta? — Souza desdenhou.
— Agora é você quem está brincando com coisa séria. Claro que é caso de polícia, houve um crime aqui.
— Ótimo! Vamos aguardar o resultado da perícia. Isso já foi longe demais, daqui a pouco vão estar noticiando que há um lobisomem à solta em Norma. — Luís começou a andar em direção a cerca.
— Aonde vai?
— Dar uma olhada por aí, vê se encontro alguma coisa importante.
Na verdade, Souza não estava concentrado. O novo relacionamento vem mexendo demais com sua mente e isso não é bom. Por vários anos, Luís vem sendo considerado o melhor policial da cidade e há quem arrisque em dizer que ele é o xerife de Norma. Claro que ele não concorda com nenhuma das duas coisas, porém não descarta sua meritocracia e nem a imprescindível ajuda de sua fiel assistente Márcia Bernardo. Certa feita, num dos raros momentos de rasgação de seda entre os dois, Souza a deixou encabulada dizendo que eles nasceram um para o outro. Fato é que, cem por cento dos casos resolvidos por Luís Souza, Márcia tem participação em sessenta por cento sem chance de erro. Agora essa nova onda de pessoas sendo atacadas e mortas de forma brutal vem deixando um clima de terror e seus superiores o vem cobrando faz algum tempo. Todos os dias Ubiracir o secretário de segurança o liga pedindo atualizações. E por falar no secretário, o celular do investigador vibrou no bolso da calça atrapalhando seu raciocínio.
— Mais um?
— Infelizmente, chefe. — segue olhando para o gramado irregular.
— O que estamos aguardando, ele completar sua lista?
— Com todo o respeito, senhor, estamos priorizando esse caso. Você já foi detetive, Ubiracir e conhece as dificuldades, então, nos dê mais tempo.
Souza localizou algo na parte de cima.
— Claro que conheço, Souza, e te conheço também, porém estou sendo pressionado. Assim que obtiver novas informações, me ligue.
Luís agachou-se sorrindo para uma binga de cigarro.
— Senhor, acho que a nossa sorte começou a mudar.
*
Finalmente o sinal anunciando o término das aulas — pelo menos da parte da manhã — soou, assim como o estômago de Soraia que não vê comida desde às sete da manhã. Um a um os alunos foram deixando a classe. Uns se despedem dela, outros sequer a olham. Isso não a incomoda. Bom! Na verdade, incômoda sim. Soraia ama o que faz, e o faz com primazia e espera no mínimo uma boa retribuição. Nem tudo acontece como a gente espera, nem mesmo o que sonhamos ou planejamos durante uma vida. Quando Soraia casou-se com Eduardo, ela pensou ter encontrado o homem que seria seu esteio, cúmplice e é claro o grande amor de sua vida. Pai de seus filhos. Nada disso aconteceu. Edu só tinha olhos para a música, sua banda de rock e grana. Como em todo o casamento, no início tudo são flores. Soraia adorava o acompanhar para os shows. Adorava ser bajulada pelos fãs do guitarrista, enfim, a professora curtia cada segundo. Mas o tempo passou. Eduardo deixou de ser aquele cara carinhoso, atencioso e companheiro que era. Soraia só servia para sexo. O artista Edu Dark tomou o lugar do marido, do provedor do lar. Dinheiro não era problema, mas Soraia não queria dinheiro, ela queria o seu esposo de volta. Não conseguiu. O casamento não resistiu a falta de atenção e de amor. O divórcio foi inevitável. Soraia jamais imaginou que estaria escrito algo dessa natureza em sua trajetória.
Ela deixou a sala e saiu em direção ao portão com a fome apertando a cada passo. A uma rua do colégio existe uma pequena pensão onde boa parte dos funcionários almoçam ou lancham. Soraia é um deles que religiosamente se delicia com às refeições caseiras do estabelecimento. Ao chegar ali a professora sentiu a fome desaparecer. Edu Dark sentado sorrindo para ela.
— Olá?
Ela não esperava por isso. Realmente vê-lo ali justamente na hora sagrada que é o almoço, foi uma surpresa muito desagradável. Soraia desacelerou os passos, engoliu seco e tentou controlar a respiração que a essa hora já estava descompassada.
— Tinha que ver sua cara. Vem! Sente-se comigo.
Ele não estava pedindo e sim ordenando. Soraia conhece bem aquele olhar e aquele tom de voz. Devagar ela puxou a cadeira e sentou-se ainda em choque.
— Não precisa se preocupar com o cardápio, fiz questão de saber qual o prato preferido de minha ex mulher. Eles já estão trazendo.
— Tanto trabalho atoa. Estou sem fome.
— Tem certeza? — Edu mudou totalmente sua expressão.
Estar sentada ali, frente a frente com Eduardo, foi como retroceder a alguns anos de sua vida. Todos aqueles terríveis sentimentos retornaram de uma só vez e com uma proporção ainda maior. Soraia se sente acuada, intimidada e principalmente ameaçada.
— Será que você pode dizer logo o que quer?
— Que papo é esse agora, Soraia? Eu só me vi no direito de almoçar com minha amiga.
— Amiga? — Soraia apertou os olhos.
Edu anuiu.
— Vamos ver se eu ajudo a refrescar sua memória. “Edu, podemos ser só amigos” você disse isso depois da audiência.
— Ah, Edu, pelo amor de Deus...
— Fala baixo! — olhou ao redor. Todos fingiam não ouvir. — eu levei a sério o que falou. Somos amigos agora, podemos almoçar juntos, trocar confidenciais e por falar nisso, me conta, como vai o namoro com o crioulo?
— Não conhecia esse seu lado racista.
— Duvido que ele seja melhor do que eu na cama.
Agora Soraia estava com o coração preto de ódio. Eduardo conseguiu atingir seu objetivo que era estragar seu dia. Edu se tornou um homem intragável.
— Não vai perguntar sobre minha carreira?
A comida chegou e Edu havia falado sério sobre a escolha do cardápio.
— Como vai a carreira, Edu Dark? — usou de desdém.
— Você está diante do mais novo contratado da maior gravadora do país. E aí, ficou feliz?
— Que bom, pra você.
— Vamos comer antes que esfrie.
Soraia tentou se levantar, mas foi impedida pela mão forte de Edu lhe apertando o pulso.
— Não me faça essa desfeita, Soraia.
Não teve jeito. A professora foi obrigada a ficar e a comer sem vontade. O papo continuou num clima de hostilidade incalculável. Foi horrível. Era possível ver nos olhos do guitarrista a satisfação de vê-la mal, de vê-la desconfortável. Soraia não tinha como dar o troco, ela estava totalmente em desvantagem e o que lhe restou foi ouvir durante as uma hora em que ficou ali as baboseiras do roqueiro.
— Nossa, como foi bom almoçar com você, Soraia, podemos marcar outro dia.
Soraia bufou. Edu arqueou às duas sobrancelhas.
— O que foi, não gostou da ideia? — segurou a mão dela com força.
— Impressão tua.
Eles saíram da pensão em direção ao carro do músico. Um bom carro, diga-se de passagem.
— Pois é, bastou me separar para que minha carreira alavancasse de vez. — bateu no teto do veículo. — O seu namorado é policial não é? Eu ouvi dizer.
Soraia estava apertando os dentes e quase chorando de tanto ódio. Mesmo assim ela assentiu.
— Acho melhor ele tomar cuidado, a carreira dele corre risco vivendo ao seu lado.
Eles se olharam.
— Eu já vou indo, Soraia.
O que um semelhante pode causar na vida de outro? Dor, mágoa, repulsa entre outros. No caso de Edu, ele causou em sua ex uma terrível vontade de sumir, de sair gritando pela rua o quanto ela o odeia. Apesar de não frequentar ou seguir qualquer seguimento religioso, Soraia foi educada nos princípios cristãos. Seu pai foi um católico fervoroso e criou os filhos segundo os mandamentos de Cristo. A menina cresceu ouvindo que não se deve vencer o mal causando o mal. Que se deve perdoar as ofensas. No entanto, Edu abusou. Soraia não está disposta a dar a outra face. Eduardo declarou guerra, então...
Ela voltou para o turno da tarde e sinceramente, sua vontade era de correr para sua cama e chorar esmurrando o travesseiro até não haver mais força em seus braços. Por que isso agora que ela encontrou um cara legal? Por que Eduardo renasceu das cinzas justamente agora? Por que toda essa tormenta? Os alunos invadiram a sala ocupando seus lugares. Na verdade, eles disputavam quase que a tapas os melhores. Se fosse num dia comum, certamente Soraia projetaria sua voz numa bronca intergaláctica. Mas não. Soraia não estava afim de guerra. Tudo o que ela mais queria era que esse dia terminasse logo para se encontrar com Souza. Apenas isso.
*
Isaías abriu os olhos depois de ter sonhado com um de seus cachorros. Não. Aquilo não foi um simples sonho ou pesadelo, mas sim um aviso. Ele dormiu demais e se sente culpado por isso. Isaías deixou a cama e saiu pela porta da cozinha em direção ao canil que fica nos fundos de sua casa. Lá estão eles. Hércules e Hulk. Ao ver o dono, os animais manifestam uma alegria sem tamanho.
— Como passaram a noite, rapazes?
Carinho em um e no outro também. Hércules e Hulk foi o que restou de sua família. Isaías Moreira é uma pessoa solitária. Não tem esposa e nem filhos. Foi abandonado pelo pai quando nasceu e sua mãe o deixou com os tios que praticamente o escravizou a vida inteira. Ele é um homem que trás dentro de si inúmeras feridas ainda por cicatrizar. Carrega na mente palavras de maldição que foram lançadas em sua direção e sem defesa, ele as absorveu. Isaías era apenas uma criança quando apanhou até perder a consciência por que era inocente demais, ingênuo demais. Seu primo aprontou e deixou que ele pagasse pela travessura. O que mais doeu não foi o castigo físico. Enquanto tinha a pele rasgada pelo chicote de bater em cavalo, o pequeno Isaías só pensava no “por quê”. Após a surra, seu tio o levou para o banho onde sua pele voltou a sofrer, porém, dessa vez ele não chorou ou gritou. Ali ele tomou uma decisão. Certa tarde, dois dias depois do ocorrido, ele brincava com seu primo perto de um barranco. Na parte de baixo só pedras lascadas cortantes e pontiagudas. Isaías o atraiu até lá.
— Ei, primo, tem uma pessoa morta lá embaixo. — disse Isaías gaguejando.
— Sério?
O garoto ficou na beira do barranco.
— Onde está a pessoa morta, Isaías?
— Aqui!
Isaías o empurrou, mas não teve coragem de vê-lo morto. Três dias de desespero. Três dias de buscas.
— Tem certeza que você não o viu, Isaías? — perguntou seu tio atropelando às palavras.
— Não, tio!
Nesse mesmo dia o vizinho encontrou o corpo já em decomposição do menino. Pânico, tristeza e choro, muito choro. Isaías olhava aquilo tudo e seu coração estava em paz ele teve o que mereceu. Hoje ele vive na companhia de seus dois American Bandogge, numa singela casa numa área afastada da cidade. Para se sustentar e sustentar seus animais de estimação, Isaías faz alguns freelancer como jardineiro na vizinhança. Ele voltou para a cozinha. Abriu o armário na parte de cima e pegou uma lata de comida para cães de raças especiais. Voltou ao canil sorrindo para os bichos.
— Trouxe-lhes o café da manhã.
Vendo os cães se alimentarem, Isaías se sente bem. Cães são seres fiéis, amáveis e de uma certa forma são ingênuos, como um dia ele foi. O ser humano é diferente. Ele guarda rancores. Nutre mágoas. Não engole sapos com facilidade. Dão espaço para a vingança, mas sabendo que está cavando a própria cova. Cães não. Cães são seres abençoados. São feras, mas são amigas.
*
Soraia chegou ao clímax pela segunda vez. Ela está exausta, suada, e querendo mais. Souza só agradece. Para ele foi como ganhar na loteria encontrar uma mulher que manda bem na cama. Ela é realmente uma pessoa especial e pessoas especiais transformam o mundo, mesmo que esse mundo seja a vida de um policial divorciado que amava a ex mulher. Luís também chegou ao clímax. Soraia saiu de cima dele rolando para o lado direito da cama.
— Céus, como eu precisava disso. — gemeu.
— É mesmo? — a beijou no ombro.
— É! — se virou e passou a beija-lo também.
— Muito estresse no trabalho?
— Digamos que sim.
Souza segurou em sua mão e a beijou. Depois comentou.
— O que são essas marcas em seu pulso?
Soraia olhou para o pulso e depois para o namorado. Eduardo a assombrou.
— Fui brincar de índio com os alunos e eles acabaram me amarrando com muita força.
— Não acredito. Sério?
— É sério.
Mentir é outra coisa que Soraia não costuma fazer, mentir é coisa do diabo, minha filha, dizia seu pai. Uma coisa é mentir para um cidadão comum, um civil. Outra coisa é mentir para um policial e não somente um policial. Luís Souza é o xerife de Norma. Ela se sente mal ao ocultar a verdade para ele. Logo ele, Souza, o homem que vem lhe proporcionando prazeres que ela jamais sonhou em viver. Porém, Soraia também se sente aliviada em saber que está evitando um mal maior. Ela detesta confusão, ainda mais sendo ela o motivo. Dois homens brigando por sua causa não seria nada bom. O jeito é seguir escondendo até quando der.
— Então, seus alunos são literalmente índios. — riu.
— Olha, não fale assim dos meus anjinhos.
— Anjinhos?
Ela se esticou para beija-lo na boca.
— Como vai o novo caso?
— Ainda em sua fase inicial, mas estamos avançando bem.
— Nossa! Na escola não se fala em outra coisa: O lobisomem de Norma. Como podem acreditar nessas coisas?
Souza se ajeitou antes de responder.
— Tudo o que é oculto fascina. Eu como agente da lei não posso sequer cogitar essa possibilidade.
— E o que meu agente da lei favorito está cogitando? — voltou a beijá-lo.
— Como eu falei, estamos no início ainda. Amanhã terei novas informações.
— Hum. Sei. “Assunto confidencial”. — Soraia tentou imitá-lo falando. — Tudo bem se não quiser contar. Aceita um segundo tempo?
— Mas que fogo é esse professora? — falou se jogando pra cima dela.
*
Uma das garotas pula incessantemente na cama enquanto que às outras duas bebem e se drogam deitadas sobre ela. Edu voltou do banheiro irritado com o barulho das molas.
— Você pode parar de pular na cama? — pegou o maço de cigarro em cima do criado mudo.
A menina de mais ou menos dezoito anos não parou. O guitarrista terminou de acender seu cigarro e olhou para ela.
— Esse barulho deve estar incomodando os hóspedes de baixo, será que dá pra você parar?
A garota parecia estar fora de si.
— O que vocês deram para ela?
A mais experiente do grupo usou de deboche mostrando o saquinho com cocaína.
— Eu disse a você que ela era muito nova para essas aventuras regadas a vodka e pó. Olha no que deu.
Edu Dark xingou um palavrão quilométrico e depois esbofeteou a ninfeta. A menina caiu batendo com a cabeça desmaiando.
— Ei, seu merda, não precisava exagerar, né. — disse a negra indo socorrer a colega.
— Eu contratei o serviço de vocês para relaxar e acabei ficando ainda mais estressado. Eu não vou pagar.
A líder tomou o que restava no copo e retrucou.
— Ah, mais é claro que você vai pagar, vai pagar cada centavo, senhor Edu Dark. Caso contrário você vai receber a visita não tão agradável do meu cão de guarda. Você decide.
Eduardo engoliu seco. A essa altura a menina já havia voltado a si. Se arrependimento matasse, Edu já estaria sepultado.
— Não vamos exagerar, né? Faço a transferência agora. — pegou o celular.
As meninas foram embora. Eduardo passou a circular por aquele quarto imenso, cheirando a sexo sujo e drogas imaginando como estaria sua vida ao lado de Soraia. O casamento acabou, mas ficaram mágoas, ressentimentos e raiva. No caso de Edu, o seu sofrimento é duplo. Ele sofre porque não foi capaz de sustentar um relacionamento promissor e também porque agora Soraia está feliz. A felicidade dela o incomoda demais. Ele sabe que o que aconteceu não tem mais volta. Ela o odeia e já demonstrou isso. Do que adianta ser bem sucedido, ser bom músico, ter fama se sua alma é atormentada noite e dia? A vida é feita de escolhas e nesse caso, Eduardo escolheu o pior lado oferecido.
*
Souza chegou ao departamento animado e não é por pouco. A evidência encontrada fez com que a investigação avançasse um milhão de anos luz. Márcia entrou em sua sala trazendo o resultado do exame de DNA. Mas antes de qualquer coisa, a assistente não pode deixar de comentar sobre o perfume de flores no ar.
— O que um homem apaixonado é capaz de fazer.
Souza se fez de desentendido. Márcia não caiu nessa.
— O senhor sabe muito bem do que estou falando. Como vai Soraia? — puxou a cadeira e sentou-se.
— Vai bem, graças a Deus.
Luís tentou encerrar o assunto, mas ficou somente na tentativa. Márcia não queria nada superficial.
— E pelo visto o negócio é sério. Até o cheiro dela você pegou.
— Como assim? — Souza levantou o braço para sentir o cheiro de sua axila.
— Esquece! — deslizou o documento até o chefe. — Isaías Moreira. Ele tem ficha por agressão.
— Nossa! Seria ele o tal lobisomem de Norma? — disse analisando o documento.
Márcia bufou revirando os olhos.
— Os peritos também examinaram minuciosamente o corpo e chegaram a conclusão de que se trata de cães, ferozes, raça grande.
— Dobermans? — abaixou o papel.
— Talvez.
Souza se levantou. Enfiou às mãos nos bolsos e andou até a janela.
— Isaías e cães ferozes. Qual seria a ligação?
— Faremos uma busca na localidade onde o corpo foi encontrado. Será trabalhoso, mas é o que temos pra hoje.
Luís Souza girou nos calcanhares.
— Vou com vocês.
Bem distante do DP, Isaías volta da rua segurando uma caixa de papelão relativamente grande e pesada. Antes de abrir o portão ele olhou para as duas extremidades da rua. Entrou. Assoviando algo aleatório, ele deu a volta na casa chegando até o canil.
— Cheguei, rapazes e lhes trouxe um lanchinho.
O primeiro a sair da casa foi Hércules. Isaías retirou da caixa um gato, vira lata, amarelo e branco e o jogou. Hulk deixou a casinha e avançou contra o felino, mas foi repreendido por seu dono.
— Hulk, que modos são esses? Aguarde sua vez.
Hércules não deu chance alguma para o pobre gato que foi despedaçado em questão de segundos. O cachorro preto, mesmo contrariado, precisou esperar assistindo seu companheiro de canil devorar seu almoço.
— Muito bem, Hércules. Volte para dentro da casinha. Hulk, sua vez, garoto.
Outro gato foi retirado da caixa. Um felino branco de olhos azuis. O animal estava bastante agitado e deu trabalho para Isaías. Hulk latia sem parar. O sujeito teve o braço arranhado uma dúzia de vezes.
— Caramba, veja o que fez.
Isaías estrangulou o bichano olhando nos olhos dele. Ele adora isso.
— Toma aí, Hulk, adiantei o processo.
Para uma pessoa como Isaías, cães são as melhores companhias. No início ele criava raças menores e dóceis, porém isso não o agradou. Isaías precisava de feras, animais que produzissem pânico nos outros, por isso ele doou os dois cãezinhos Basset e tratou logo de buscar outra raça mais forte. American Bandogge, talvez. Foi paixão a primeira vista. Hércules e Hulk chegaram em seu novo lar ainda filhotes e foram tratados como crianças e filhos. Isaías tinha um objetivo em mente: transformá-los em verdadeiras máquinas de combate, assassinos cruéis, seus defensores implacáveis. E assim foi. Cães que nasceram para serem amigos, companheiros e fiéis a vida inteira, se tornaram monstros aterrorizantes.
— Acho bom se comportarem, quem sabe uma volta por aí mais tarde?
Isaías não é louco, sua mente funciona perfeitamente bem. Moreira possui formação, estudou enfermagem e já até trabalhou um certo tempo nesse ramo. Isaías sempre foi fissurado em tragédias, desastres com vítimas fatais e com ferimentos graves. Ele tem verdadeira fixação por isso. Ele gosta de ver. O que a psicologia diz sobre isso? O enfermeiro não é o único a sofrer desse tipo de transtorno, há milhares de pessoas que sentem prazer assistindo o martírio alheio, Isaías é só mais um. A grande questão é que, ele, Isaías Moreira, provoca toda a tragédia. Ele é o causador do sofrimento. Para saciar seu desejo de ver carne sendo fatiada, mordida, mastigada e lacerada, ele usa seus animais de estimação como protagonistas. Covarde.
*
Não será fácil encontrar um homem de aparência comum como Isaías. Norma é uma cidade grande, com bairros intermináveis, cercado por prédios e árvores milenares. O jeito é adotar o velho e bom boca a boca. Para a polícia, aquele ditado nunca fez tanto sentido — mesmo sendo dito errado, “ quem tem boca, vai a Roma”. O bairro onde os crimes foram cometidos é um lugar modesto, calmo e pouco valorizado. A maior reclamação de seus moradores é justamente o seu esquecimento por parte das autoridades. O fornecimento de luz e água é precário, sem falar da infraestrutura. Souza desceu do carro e entrou num pequeno mercado onde o rapaz responsável pelo caixa puxava um sono pesado.
— Olá? — o cutucou.
— Ah, sim, desculpa.
— Conhece um tal de Isaías Moreira?
O garoto apertou os olhos e lábios forçando sua mente a trabalhar.
— Esse nome não me soa estranho. — ele olhou para o distintivo fixado no cinto. — você é policial?
— acertou! — Souza fez um sinal de positivo.
— Avance um pouco mais na rua. Na parte de cima há um pequeno boteco, com certeza devem saber quem é esse Isaías.
— Obrigado pela cooperação.
De volta ao veículo, Luís Souza deixou transparecer seu desânimo. Márcia buscava no celular às ruas e vielas mais remotas da localidade.
— Vamos mais a cima. — olhou para sua assistente.
— Iremos ultrapassar o que chamamos de linha vermelha. Melhor seguirmos por aqui, é menos perigoso.
— Certo!
Souza engatava a ré quando viu um suspeito deixando uma rua sem asfalto e correr para o lado mais alto do bairro.
— Não está pensando em ir atrás, não é? — Márcia pegou sua arma.
— Claro que estou.
O carro acelerou. Os pneus produziram fumaça e os poucos transeuntes que circulavam por ali pularam para a calçada. O suspeito era um rapaz negro, de bermuda e camiseta que ao sentir que havia chamado a atenção, iniciou um corrida meio atrapalhada. Márcia abriu o vidro e deu ordem para que ele parasse.
— Polícia. Pare agora.
Ao invés de acatar a ordem policial, o suspeito forçou um pouco mais a sua corrida deixando para trás suas sandálias. Luís pisou fundo e não perdeu a chance de usar o veículo a seu favor. Ele jogou o carro para a direita fechando a passagem do indivíduo que capotou por cima do capô. Imediatamente Souza deixou o carro com a arma em punho.
— Fique onde está.
O rapaz, mesmo machucado, partiu pra cima de Souza com chutes e socos sem direção certa.
— Mais que merda. — Luís guardou a arma.
Um dos chutes acertou o detetive no estômago o levando a arfar. Furioso, Luís Souza se recuperou rapidamente e lhe aplicou um gancho e depois um cruzado forte de esquerda. Lona. Márcia o algemou.
— Reviste os bolsos dele. — disse Souza ofegante pressionando o abdômen.
Márcia encontrou uma pequena quantidade de maconha e cocaína.
— Eu só uso, eu juro.
— Tem certeza? — Souza contou. — você estava vendendo. Levanta ele, Márcia. Qual o seu nome?
— Lucas.
— Qual o seu vulgo? — Luís o segurou pelo braço.
— Não tenho. É só Lucas mesmo.
— Certo! Lucas, você está preso por tráfico de entorpecentes. — o investigador o empurrou para dentro do carro.
Márcia abriu a porta traseira.
— Conhece Isaías Moreira?
— Isaías, dono dos cachorros?
Luís e Márcia se olharam.
— Ele cria cachorros? — Márcia ocupou o lugar ao lado de Lucas.
— Sim. Dois. São grandes.
— Sabe onde ele mora? — Souza ocupou o lugar do motorista e girou o corpo.
— Claro que eu sei. Posso levá-los lá.
— Agora? — Márcia pegou o telefone.
— Sim.
Souza, abruptamente o segurou pelo pescoço deixando sua parceira assustada.
— Luís, o que é isso?
— Ele vai nos levar para o foco, está armando pra cima da gente. Ele não fez exigência alguma. Canalha. — o soltou.
O rapaz tossia desesperadamente.
— Vamos levá-lo para o departamento.
*
Desde quando abriu os olhos nessa manhã, Soraia sentiu que algo de ruim iria acontecer. Ela até tentou fingir que nada estava acontecendo, que era coisa da sua cabeça, mas de nada adiantou. Aquele pressentimento sufocante ainda estava lá e cada vez mais presente. O primeiro turno na escola foi tranquilo, tudo dentro do esperado. Criança reclamando das brincadeiras dos colegas, provocações, troca de chutes por baixo da mesa entre outras coisas, nada que ela não pudesse controlar. O que há de errado? Hora do almoço e Soraia não tinha muito apetite. Ao entrar na pensão onde costuma fazer suas refeições, tudo aquilo que vinha sentindo desde a manhã, se materializou na figura de Edu Dark sentado sorrindo para ela.
— Cada vez mais linda. O namoro com o investigador está lhe fazendo muito bem.
— Pelo amor de Deus, Eduardo, me deixa em paz. — deu às costas.
— Calma aí, professora, onde pensa que vai?
Dessa vez ele a segurou um pouco acima do pulso. Soraia abriu a boca, mas não gritou.
— Senta!
Soraia entendeu o recado. Seu corpo inteiro reagia ao que sentia naquele momento: medo. A vontade de chorar é grande, mas a de fugir daquele lugar é maior ainda.
— O que vamos comer? — Edu pegou o cardápio.
— Para mim, nada. Pra você, chá de sumiço.
Eduardo ficou sério, petrificado. Soraia quase não o reconheceu.
— Paciência tem limites, não acha? — a voz saiu como que um rosnado.
A professora abaixou a cabeça.
— Eu estou tentando manter pelo menos uma amizade entre a gente.
— Eduardo. Agora é um pouco tarde para isso. O que era para ter sido feito há tempos atrás, agora não adianta mais. Eu estou em outra. Entenda isso de uma vez por todas. Você está bem, é rico, tem uma certa fama, siga em frente. Faço votos de felicidade.
Dark a segurou pelo mesmo braço e apertou. Apertou tanto que sua circulação foi interrompida.
— Me solta, Edu. — sussurrou.
— Cuidado com essa palavra, felicidade pode ser algo perigoso. Dependendo da fase em que se vive, essa palavra pode decretar o fim de alguém.
Os dedos do músico deixaram marcas. Finalmente Soraia chorou. Ela esfregava o local magoado e seu pensamento estava longe, em Souza. Como ela gostaria que ele estivesse ali, naquele momento.
— Eu quero ser seu amigo, Soraia.
— Me deixe em paz.
Soraia foi embora. Sua fuga foi meio desastrada, mas o que realmente interessava era conseguir sair dali. As pessoas que ali estavam olharam diretamente para o guitarrista que deu de ombros.
— Garçom, por gentileza.
*
Isaías não está conseguindo entender, mas algo de muito ruim estava para acontecer. Ele sente isso, já até sonhou inclusive. No sonho, ele corria por uma estrada escura, asfalto molhado devido a chuva torrencial que caia e logo atrás dele, Hércules e Hulk. Seus cães, famintos, o dobro do tamanho que eles tem na realidade e seus rosnados se misturavam aos trovões. Moreira já estava exausto, tropeçando em suas próprias pernas, até que elas não o suportaram mais. Isaías foi ao chão machucando feio os dois joelhos. A chuva apertou. Um raio acertou uma árvore a poucos metros de onde ele estava.
— Calma, rapazes, sou eu. — gritou.
De nada adiantou clamar. Hércules foi o primeiro a chegar e a mordê-lo no braço lhe arrancando um bom pedaço. Hulk o mordeu em suas partes íntimas fazendo seu dono uivar feito um lobo para a lua. Quando finalmente Isaías sofreu o golpe fatal, ele acordou girando o corpo na cama e caindo.
— Meu Senhor!
Sua garganta estava mais seca que palha. Ofegante e sentindo um forte mal estar, o criador de cães correu até a cozinha. Dispensou o copo. Um litro de água gelada foi pouco, que tal uma cerveja? Que sonho dos diabos foi esse? Já reposto, ele foi até o canil. Lá estavam eles, Hércules e Hulk, disputando quem ficaria com o osso de borracha.
— Vocês são incríveis. Amigos leais.
Apesar do alívio por tudo não ter passado de um sonho, Isaías Moreira ainda convive com um pressentimento ruim. Como se alguém o vigiasse ou estivesse a sua procura. Isso não deveria assusta-lo, afinal, ele não é inocente. Nunca foi. Então, o que estaria acontecendo? Sua paranoia o fez ir a rua e passar alguns segundos olhando para as árvores, as pessoas passando, os carros, enfim, até os passarinhos foram alvo. Relaxa Isaías. Ele voltou para dentro de casa e abriu uma lata de cerveja barata. Quando sinto essas coisas é o meu corpo, minha alma e principalmente, o meu espírito pedindo diversão e eu conheço bem a diversão que eles querem. Alguém terá que ser sacrificado para satisfação do espírito ceifador de Isaías.
*
Soraia e Souza deixaram o quarto e foram para o banheiro. Ela ocupou o box e ele o sanitário esvaziando sua bexiga. O policial não a resistiu se banhando naquela água quente e sem pedir permissão, invadiu o box já beijando suas costas e ombro.
— Não estamos tão mal para dois quarentões, quase cinquentões. — ela brincou.
— E o que é melhor, sem uso de aditivos. — Souza vibrou.
— Aguentaria um terceiro tempo? — se virou para ele.
— Quem sabe um incentivo a mais não resolva.
— Aqui, o que não falta é um bom incentivo. — se ajoelhou.
Minutos depois, Soraia preparava um lanche na cozinha. Cabelos molhados, corpo perfeito coberto por um roupão. Luís a observava sentado na copa, Deus foi generoso comigo dessa vez. Não que Suzana seja uma mulher feia. Pelo contrário. Sua ex ainda mexe bastante com ele, mas Soraia tem algo que o faz ser perdidamente louco por ela. Coisa de pele, tesão, contato, sabe-se lá o quê. Para pegar o achocolatado que estava na parte de cima do armário, a professora precisou ficar na ponta dos pés e ainda esticar o braço. Souza viu as manchas roxas em seu pulso.
— Terei que te levar para fazer exame de corpo de delito.
Soraia girou.
— Como?
— Se continuar assim, terei que prender seus alunos. Olha o seu pulso.
Soraia engoliu seco e alisou o local.
— Não adianta pedi-los para não apertar, eles são uns índios mesmo.
Mentir para o homem da sua vida é ruim, mas, mentir para um policial é sem sombra de dúvidas uma péssima ideia. Soraia vem curtindo cada minuto o namoro com Luís Souza, e já até pensa em avançar um pouco mais com o relacionamento, porém, a mentira a vem assombrando. Ela não sabe qual será a reação dele ao saber dos encontros com Edu, mesmo sendo esses encontros frutos da obsessão de seu ex. Contar toda verdade para Souza, de repente levaria tudo a perder? Ou o policial tomaria uma atitude drástica? Soraia não sabe o que pensar. Por hora, ela segue mentindo para ele.
*
Não é uma coisa legal o que o músico vem fazendo e o que é pior, ele sabe muito bem disso. O certo era esquecê-la, deixá-la em paz, partir para outra. O ciúme que Edu sente é algo que se não for controlado, pode terminar em tragédia. Soraia foi dele por anos, e só depois que a perdeu foi que ele se deu conta da mulher maravilhosa que tinha ao lado. Na maioria das vezes isso acontece. Eduardo só tinha olhos para sua guitarra. Só tinha cabeça para sua carreira musical. Hoje, tudo isso ele tem, porém, o seu bem mais precioso se encontra nos braços de outro. Ele é um bom músico, pra não dizer o melhor. Tem uma certa fama, todos os bons artistas querem gravar com ele. Dinheiro não é problema, ele tem de sobra. O que Edu não tem é Soraia.
Ele não consegue terminar um compasso sem Soraia interferir em seu raciocínio. Eduardo Dark desiste — pelo menos por enquanto de sua nova canção. Para fazer com que a mente fuja um pouco da realidade, ele decide beber. Um uísque. O interfone toca.
— Pois não?
— Senhor Eduardo, tem uma moça aqui embaixo dizendo que o senhor a chamou...
— Ah, pode deixa-la subir.
Dark estava tão concentrado na música, que esqueceu que havia ligado para uma garota de programa. O programa ficou caro, mas como já foi dito, dinheiro não é problema. Edu serviu mais um copo. A garota chegou. Uma jovem de vinte anos que aparenta ter menos que isso. Loira natural. Pele bem tratada e um corpo magro com curvas. Bem o estilo do guitarrista.
— Nunca pensei em lhe ver pessoalmente. — a voz é bem infantil.
— Já foi em algum show meu? — lhe entregou a bebida.
— Sim!
— Não vai me pedir autógrafo, não é?
— Claro que não. Sou uma profissional, não posso misturar as coisas.
— Sei! — Edu cruzou os braços. — trouxe o que eu pedi?
— Na bolsa.
— Legal. Você será minha enfermeira. Vá se vestir.
*
Suzana mais uma vez fez questão de compartilhar com o ex marido o comportamento inadequado do filho. Jeferson Souza está crescendo e junto com ele seus questionamentos e revolta. Desde quando se separou do policial, a jornalista vem dando conta sozinha do garoto, porém, na medida que o tempo vai passando, seus argumentos com ele não tem surtido efeito e por isso as brigas e discussões entre mãe e filho só se intensificam.
— Sei que você é uma pessoa muito ocupada, Luís, mas nós precisamos nos alinhar quanto a criação do Jeferson.
— Concordo plenamente com você, Suzana. Eu estou no meio de uma investigação e assim que a mesma acabar, vou até aí para termos uma conversa.
— Lhe agradeço.
— Ele está aí por perto? — Souza olhou para o final da rua de dentro da viatura.
— Sim! — pausa. — Jeferson, seu pai quer falar com você. — passou o telefone para o filho. — Oi. Pai?
— Oi, filho, o que está acontecendo aí? Você me prometeu que iria proteger sua mãe para mim.
— Pai, se liga, eu só era uma criança.
— Sim, mais a palavra de um homem deve valer até o fim, mesmo que esse homem seja uma criança de sete anos. Agindo dessa forma você só entristece sua mãe e a mim também.
Silêncio.
— Eu vou fazer uma visita a vocês dois assim que a investigação acabar. Teremos uma conversa, como família, entendeu?
— Tudo bem.
— Promete melhorar até lá?
— Valeu, pai.
O coração do detetive ficou um pouco mais tranquilo. Suzana assumiu o aparelho.
— Obrigada. A situação estava insustentável mesmo.
— Imagino! Aguarde minha chegada.
Luís Souza gostaria que Suzana falasse um pouco mais, que mudasse de assunto, porém, o que aconteceu, mais uma vez foi o silêncio. Quando teremos uma trégua? O que se passa na cabeça dela? Ela realmente o esqueceu? Desde quando decidiram se separar, Suzana jamais tocou no assunto reconciliação, nunca demonstrou sequer fraqueza — pelo menos na frente dele, é o que ele pensa. Já o detetive segue alimentando um sentimento por ela e não é retribuído. Talvez nunca seja. Soraia apareceu em sua vida como um bálsamo na ferida. Ela não tem ideia do bem que ela faz ao policial. Antes da professora, Souza estava conformado com a vida que vinha levando. Bebida todos os dias. Noites sem sono. Mergulho em pensamentos destrutivos, Luís estava arruinado psicologicamente. Porém o destino lhe presenteou com ela e em questão de dias todo o quadro já havia mudado.
Agora toda a sua atenção deve ser voltada para a casa singela que se encontra na metade da rua. O rapaz preso por Márcia falou a verdade na sala de interrogatório. Nesse bairro, exatamente nesse ponto existe um sujeito esquisito que cria dois cães da raça American Bandogger e é bem provável que seja ele, Isaías Moreira. Márcia apareceu na janela do carona, do lado de fora.
— E aí, chefe, como faremos?
— Seguiremos o procedimento padrão. Quero homens dando cobertura o tempo todo na parte de trás da casa. Isaías já provou que é um sujeito perigoso.
— Cães assassinos!
— Criador assassino, você quis dizer. Os animais só fazem o que seus donos mandam. Nem sempre quem puxa o gatilho é o assassino de fato. — desceu da viatura. — vamos nessa.
Isaías voltou a sentir aquela estranha sensação de que algo de muito ruim estaria prestes a acontecer. Dessa vez foi tão forte, tão nítido, que ele seria capaz de dizer que o perigo se encontra na esquina de sua casa. Ele preparava o café quando de repente seu coração o alertou. Moreira correu até seu quarto de onde é possível ver da janela parte da rua. Ele a foi abrindo aos poucos, em silêncio, suas mãos tremem e transpiram. Nenhuma movimentação. A rua se encontra numa calmaria absurda, fazendo lembrar um cemitério. A rua onde Isaías mora é conhecida pela quantidade de árvores em ambos os lados. Durante o dia elas oferecem frescor e beleza, porém a noite é bastante favorável a atuação de marginais. Isaías já estava fechando a janela quando viu um policial sacando seu rádio da cintura e falando freneticamente.
— Mais que droga.
Medo é uma das poucas coisas que ele, Isaías Moreira se permite não sentir, mas hoje a situação é extraordinária. O enfermeiro deixou o quarto esbarrando nos móveis e até tropeçando em alguns deles. No caso o sofá. Hora de colocar seus “rapazes” em combate. Ir para a cadeia não está em seus planos.
— Hulk, Hércules, vamos meninos.
O policial olhou mais uma vez para o portão e sinalizou para Souza.
— Vou entrar!
— Ainda não. — Luís parou para pensar.
— A casa é essa aqui, o que nos impede? — retrucou o colega de farda.
— Isaías pode ter cara de maluco, mas louco ele não é. — Márcia completou.
— Ele não sabe que estamos aqui, Souza. Vamos invadir.
— Me dê um tempo. — chamou a equipe de apoio. — como estão as coisas por aí nos fundos?
— Movimentação zero, a casa parece vazia, senhor.
— Copiado. — guardou o aparelho. — vamos.
O policial pulou o muro. Souza e Márcia e mais outros cinco aguardam perto do portão com suas armas em punho. Na parte de dentro o agente se abrigou entre algumas plantações. Ele está certo de que a casa está vazia e por isso deixou o abrigo e guardou a arma. Erro imperdoável. Hulk, o cão negro saiu da lateral da casa, rosnando feito um monstro possuído, correndo em direção ao policial.
— Meu Deus!
Os gritos de dor e desespero ecoam pelas paredes. A equipe dos fundos também invadiu o quintal. Souza faz gestos. A situação ficou ainda mais tensa. Enquanto isso os gritos do agente segue poluindo os ouvidos de todos os presentes.
— Souza, Carlos está sendo devorado por um cão preto.
— Não atirem no animal, já vamos socorrê-lo.
Hulk continua o ataque rasgando a carne do agente com suas presas e unhas. Com o rompimento dos vasos, o sangue escorre feito às águas de um rio deixando aquela parte do quintal inundada de vermelho.
— Me ajudem! — implorou.
Márcia engole seco cada vez que Carlos berra pedindo socorro.
— Souza, precisamos de tranquilizantes.
— Pode deixar.
Dentro da casa Isaías coordena os ataques de suas feras dando somente uma voz de comando. Ele previa esse momento, esse dia, por isso ele os treinou. De longe ele assiste Hulk destruir o policial que a essa altura não consegue esboçar qualquer reação. Isaías gosta do que vê. Para ele sua missão foi cumprida. Não foi nada fácil. Adestra-los foi uma das tarefas mais difíceis e só depois de muito tempo ele percebeu que deixá-los com fome e insistir em certos comandos de voz daria certo. Funcionou. Hoje ele tem nas mãos verdadeiros guerreiros a sua disposição. Não será fácil me pegar, otários.
Já não é possível ouvir os gritos do policial. Souza como o chefe da operação teme que seu homem esteja morto. Não seria nada bom ter nas costas a culpa pela morte de alguém. Seria péssimo. Luís Souza não se perdoaria. Sem pensar muito e fazendo uso de sua boa forma, Souza subiu no muro. Márcia protestou, mas quem disse que isso importa para ele no momento? Luís quer entrar lá e salvar a vida de seu subordinado.
— Luís, você está louco? Vamos esperar a chegada dos tranquilizantes.
— Não há mais tempo, Carlos pode estar morto.
Lá de cima Souza pode ver um dos cães circulando. É enorme e intimidador. O detetive é totalmente contra maus tratos e violência com os animais. Já houve casos em que ele precisou autuar donos de pets em flagrante, mas hoje a situação requer um decisão rápida, é a vida de um policial que está em jogo. Ele sacou a pistola. Respirou fundo e pulou. Ao bater no chão do outro lado, mesmo sentindo uma pequena dor aguda no joelho devido ao impacto, Souza apontou sua arma para o cachorro. Isaías acompanha tudo pela abertura da janela. Hulk não o atacou, esperou às ordens. Enquanto isso Hércules vigia a outra entrada.
— Não adianta se esconder, Isaías, sua situação já está bastante complicada. Você tem um policial morto em seu quintal. Render-se agora.
Por um instante Souza olhou para Carlos deitado em meio ao próprio sangue e rezou para que o mesmo estivesse vivo. Luís nunca foi ligado em questão religiosa. Para ele, Deus sempre será Deus e pronto. O imbatível e foi graças a Ele que o policial se moveu. Obrigado!
Luís Souza deu dois passos e o cão negro não se mexeu.
— Não abuse tanto assim, policial, Hulk é um dos meus animais mais teimosos, ele pode lhe atacar independente de minhas ordens. — a voz de Isaías soou da janela.
Souza olhou para o bicho. Sua transpiração se tornou fria e densa.
— Do que adianta resistir agora? Se esse cachorro me atacar, em segundos dezenas de agentes estarão em seu quintal, você será preso de qualquer forma. Pense.
Isaías se afastou da janela. Souza estava certo. Se entregar seria a melhor maneira de sair dessa com um pouco de dignidade. Hércules ainda se encontra no aguardo de novas ordens enquanto que Hulk vigia o detetive lá fora. Algo precisa ser feito e rápido o tempo está se esgotando. De repente ele é invadido emocionalmente por um sentimento de perda, de tempo perdido e de vida sem perspectiva. O que ele fez de sua existência até aqui? Não produziu, não constituiu família, não fez bem nem a ele próprio. Isaías Moreira agora sabe que sua vida é uma verdadeira farsa e que o melhor jeito de consertar tudo isso é atacando.
— Hércules, vá lá fora e os devore por inteiro.
O cão. O velho amigo do homem. Hércules deixou a casa latindo sem parar. Isaías se aproximou outra vez da janela. Souza ainda era vigiado por Hulk.
— Mudança de planos, policial. Resolvi lutar. Hulk, acabe com ele.
Ordens são ordens. Assim que ouviu a voz do dono, o cão deixou a posição de vigia para o de atacante implacável. Tudo isso foi visto por Souza como que em câmera lenta. Em fração de segundos toda sua vida passou em sua cabeça. Suzana, Jeferson, sua bela carreira na polícia, os anos complicados de quando vivia com seus pais no interior de Norma e até mesmo seu novo amor, Soraia. O cachorro não estava disposto a parar com o ataque, ele é um animal, não pensa, não raciocina, ele foi treinado para essa finalidade. Luís Souza sacou sua pistola e mirou, mas desistiu no meio do caminho. A execução de um pobre animal não está em seus planos e além do mais, isso lhe traria uma certa dor de cabeça. Assim que viu que, o bicho saltou para a mordê-lo, Souza protegeu seu pescoço com o braço e o aguardou. Ainda com os olhos abertos ele ouviu os grunhidos de Hulk. Isaías berrava da janela.
— Vocês mataram meu cachorro, seus malditos. — disse a plenos pulmões e salivando.
Um policial sentado com um rifle fez um sinal para Souza do alto do muro.
— Tranquilizante, senhor.
Luís pulou o corpo do cão e correu para dentro da casa. Isaías estava fora de controle e não parava de chamar por seus animais.
— Hércules, Hulk, me ajudem.
— Isaías Moreira, o senhor está preso, venha comigo.
Mesmo vendo sua total desvantagem, Moreira abriu a gaveta do armário da cozinha e tirou de lá uma faca grande de churrasco. Feito um alucinado e desferindo golpes sem direção certa, Isaías foi pra cima do policial. Souza voltou com a pistola para o coldre e entrou na briga. De início, Luís apenas se defendeu usando boas esquivas. Como praticante de boxe, Souza sabe que, nesses casos o melhor a ser feito é deixar o oponente se cansar. Foi o que aconteceu. Isaías já havia colocado um palmo de língua para fora quando foi golpeado. Nocaute.
Márcia e outros agentes entraram na casa a tempo de ver Souza o algemando.
— Achei que só encontraria pedaços de você no quintal. — disse a assistente olhando ao redor.
— Pronto, pegamos o lobisomem de Norma.
Isaías ainda estava apagado e sangrava no supercílio.
— De novo essa história.
— Levem ele pessoal. — Souza o levantou.
*
Depois de passar algumas longas horas dentro de um estúdio, fazendo e refazendo solos de guitarra para o novo trabalho, tudo o que Edu Dark quer é tomar uma cerveja e quem sabe depois se divertir com duas ou três meninas de programa. Enquanto aguarda a chegada do elevador, ele voltou a pensar em Soraia. Raiva, paixão, arrependimento, ele não sabe direito o que sentir. Raiva é melhor, é mais fácil. Basta você ir lá e causar dor na pessoa e pronto, a raiva passa. O elevador chegou. Mudança de planos. Hoje às meninas terão que aguardar. Quem sabe mais tarde. O plano é seguir direto para a escola onde sua ex trabalha e lhe tirar a paz. É melhor que uma lata de cerveja ou uma taça de vinho. Na recepção do estúdio, ele passou por alguém sentado num dos bancos.
— Senhor Eduardo Dark, quero um autógrafo, sou seu fã.
Dark girou o pescoço na direção da voz.
— Opa! — engoliu seco. — você é o...
— Sim, sou eu mesmo, Luís Souza, namorado de Soraia, sua ex.
— Pois não, quer um autógrafo mesmo? — encolheu os ombros.
— Cale a boca e venha comigo. — Souza lhe mostrou a arma no coldre.
Edu na frente e o policial logo atrás. Nessa ordem eles deixaram o prédio do estúdio. Dark havia deixado o carro do outro lado da calçada. Souza o parou antes que ele pudesse atravessar a rua movimentada.
— Vamos no meu carro.
— Mas o meu material todo está lá...
— Prometo não demorar.
Souza pegou a via principal. Enquanto dirigia não trocou uma palavra sequer com o guitarrista, Edu estava desconfortável naquele banco do carona. Assim que Luís entrou na avenida que corta a cidade, Eduardo se manifestou.
— Posso saber onde está me levando?
Luís Souza fez sinal de silêncio. Dark balbuciou algo como “merda”
O carro andou por cerca de vinte minutos até sair da avenida e pegar uma outra que irá dar numa região conhecida como industrial. Souza encostou o veículo próximo a uma bifurcação e o desligou.
— Desce!
— Vai me matar, não é? — gaguejou.
— Desce logo rapaz.
Edu mal conseguia abrir a porta do carro, mal conseguia andar, todo o seu corpo tremia. Ele pensou em correr, mas não conseguiria ir muito longe. O jeito é aguardar.
— Soraia e eu estamos juntos, você sabe, não é?
Dark assentiu.
— Ela nega, mas eu sei que vocês tem se encontrado, procede?
Disse que sim num gesto de cabeça.
— Soraia mente pra mim, mas eu sei que, as manchas roxas nos braços dela são causadas por agressões suas. É verdade?
Eduardo se afastou do carro.
— Não precisa ficar com medo. — Souza tirou a pistola do coldre e o colocou no banco do motorista. — vamos resolver essa parada de igual para igual. Homem a homem.
— Está me chamando pra briga, é isso? — apertou os olhos.
— Agora você está começando a entender o jogo. — fez a guarda de lutador. — vem, seu covarde.
Edu Dark deu a volta no carro. Tirou a jaqueta e a deixou em cima do veículo. De início eles se estudaram bastante, mas foi Dark quem desferiu o primeiro golpe. Souza pode sentir o peso da mão do músico.
— Boa! Gostei! Experimenta isso então.
Dois cruzados. Dark foi pro chão.
— Levanta! — disse sacudindo os braços.
Edu, cambaleante se levantou, mas para cair outra vez. Dois cruzados e um direto. Chão. O sangue já começa a escorrer. Furioso, o ex de Soraia parte para o tudo ou nada, mas tudo o que consegue e levar outros fortes golpes. Chão e gemidos.
— Pelo visto você é valente só com mulheres, não é?
— Cala a boca seu merda.
No boxe é proibido o chute, mas ali no caso Souza não se encontra num ringue, então. O chute acertou o rosto de Dark quase lhe arrancando para fora do corpo. O guitarrista caiu deitado no asfalto. Luís veio por cima e o socou várias vezes na cara.
— Nunca mais fale, olhe ou procure minha mulher, entendeu?
— Ah, pare, pare, eu entendi, entendi...
Souza saiu de cima massageando os punhos. Pegou a jaqueta e a jogou contra o músico e entrou.
— Ei, vai me deixar aqui, no meio do nada? — sentou-se cuspindo sangue.
— Indo por ali você vai encontrar a estrada, pede um Uber, tem sinal de celular lá. — manobrou e foi embora.
*
Soraia rolou para o outro lado da cama descabelada, suada, mas satisfeita. Como valeu a pena as duas horas de sexo mesmo cansada do trabalho.
— Assim vou ficar mal acostumada.
— Que bom. — a abraçou.
— E aí, como vão as coisas com o seu filho?
— Amanhã estarei indo até lá, nada como uma conversa de homem para homem.
— “filhos, filhos, melhor não tê-los, mas se não temos, como saberemos?” — riu.
— Verdade. Quer ir comigo?
— Ah, melhor não, chega de confusão.
Souza a puxou para mais perto.
— Então vamos para a prorrogação. — a beijou nas costas.
— Socorro, tem um tarado na minha cama.
FIM.

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