quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Sangue

 


Sangue


A chuva começou a cair em Raposo nas primeiras horas dessa manhã de segunda-feira e até o presente momento não deu trégua para os habitantes dessa pequena cidade que fica bem afastada do grande centro. Raposo pode ser minúscula, remota, porém é famosa por ser pacata. Calma até demais pra falar a verdade. Pessoas que querem se ver livres do inferno que é a cidade grande procuram paz e descanso ali. Seja para passar um final de semana ou feriado prolongado, Raposo é perfeita para desestressar. No caso de Maura Goulart, essa cidadezinha foi a escolhida para ser seu refúgio eterno – pelo menos até quando durar sua existência – a policial civil aposentada decidiu faz algum tempo viver ali e tentar esquecer as lutas que enfrentou não só na profissão, como também em sua vida particular. Maura investiu quase tudo o que tinha em sua conta bancária na compra de uma casa e um veículo para viver razoavelmente bem em Raposo e até o momento ela vem desfrutando de tudo que almejou um dia. 

No início foi difícil se adaptar, mas isso durou apenas algumas semanas e logo a ex investigadora já havia feito amizade com Vivian, sua vizinha adolescente de 16 anos. Apesar da pouca idade Vivian é madura e possuí o que Maura mais gosta numa amizade: fidelidade. Vivian é simplesmente um túmulo. Enquanto a chuva ainda cai, as duas conversam sentadas na varanda da casa de Maura tomando chá de erva cidreira degustando algumas torradas. 

— Então você deu um fora no cara? – Maura sorriu olhando a natureza ao redor.

— Sim! Onde já se viu, no segundo encontro o sujeito segurar na minha bunda?

— Fez bem, minha querida. Precisamos nos dar o respeito. 

Vivian sorveu todo o chá e se serviu de mais.

— E você, Maura, como se comportava com os carinhas de sua época?

O sorriso desapareceu do rosto da ex policial. Ela pegou a xícara e olhou para sua amiga.

— Na verdade, minha cara Vivian, eu nunca fui um exemplo de boa conduta feminina. Sempre dei liberdade para os meninos explorarem meu corpo e paguei bem caro por isso.

Vivian assoprou a bebida.

— Sério?

— Infelizmente! Imagine só uma garota de 17 anos transar com o menino no segundo encontro? Horrível!

— E foi bom, pelo menos? – a menina arregalou os olhos. 

A chuva havia diminuído bastante, mas o tempo seguia frio e com rajadas de vento. 

— Para ele sim. – abaixou a cabeça. 

— E o que você fez depois disso?

— Bom! Eu prometi para mim mesma que tomaria vergonha na cara e não cederia assim tão fácil. 

— E? – Vivian encolheu os ombros. 

— Na outra semana lá estava eu trepando com outro. – riu.

Vivian também não conseguiu segurar o riso.

— Tia Maura, a senhora era impossível hein.

— Demais, demais. – mais risos.

*

Duas lindas meninas jogam conversa fora sentadas no ponto de ônibus vislumbradas com as descobertas dessa fase da vida. Suspensas pelos ombros estão às mochilas, chamativas, coloridas e com chaveiros ainda mais exagerados ornamentando as bolsas. A mais falante delas, no caso é uma morena escura, alta, pernas longas e cabelos cacheados. No rosto somente um batom num tom de vermelho bem próximo do rosa, diferente de sua coleguinha branca que exagerou na produção. Um coletivo relativamente vazio parou e elas seguem tagarelando sobre assuntos variados. Logo atrás da parada de ônibus fica o colégio público de onde elas saíram a meia hora e parado perto do portão de garagem está Jadir Primo observando cada movimento das duas adolescentes. Trinta e cinco anos, óculos de armação retangular, cabelos negros penteados para trás e um bigode ralo. Ele termina de fumar seu segundo cigarro e o joga porcamente no chão. Antes de sair de seu lugar e se dirigir até as meninas, ele ensaiou mentalmente sua fala e tratou logo de desacelerar seus batimentos cardíacos.

— Fica frio garotão. São só duas pirralhas.

O bom bate papo das duas foi interrompido pelo muito bem educado boa tarde do tiozão com cara de bibliotecário.

— Qual das duas já conhece o meu estúdio para novos Youtubers?

Elas se entreolharam e riram.

— Não senhor, não conhecemos. – disse a morena.

— Tudo bem, talvez porque ainda seja uma novidade aqui em Raposo. – falou olhando para os seios volumosos da branca. – qual o seu nome?

— Daniele.

Jadir também reparou em seu pescoço.

— Você é perfeita para o meu projeto em andamento. – engoliu seco. 

— Sério? – olhou para a amiga sorrindo. – e qual o projeto?

— Então, mais tarde eu vou me reunir com outros selecionados lá no estúdio. Faremos uma reunião de pauta e em seguida os testes. Aparece lá. Anote o endereço por favor. 

*

Aos poucos ela vai acordando e percebendo que tudo aquilo que sua mãe a alertara aconteceu, mas que agora é tarde demais para arrependimentos. Ao tentar se erguer, Daniele sentiu uma estonteante pontada como se alguém a perfurasse no cérebro fazendo uso de um objeto contundente. Mesmo com os olhos em chamas devido a ardência, a estudante conseguiu notar suas pernas e pés amarrados assim como seus braços e mãos também. Daniele foi deitada cuidadosamente numa espécie de maca hospitalar num quarto pouco iluminado e bastante abafado. Assim que a luz de led foi acesa repentinamente sua dor de cabeça aumentou consideravelmente a fazendo gritar.

— Oi! Que bom que acordou. – Jadir tem nas mãos um escalpe e seringas. – já podemos iniciar o procedimento. 

— Me tira daqui. – berrou.

— Silêncio, Daniele. – colocou o dedo indicador na frente da boca.

— Vai a merda, me desamarre. – disse ainda aos berros.

Daniele é bonita, tem o rosto redondo, olhos grandes e claros e uma boca suculenta. Não aparenta ter a pouca idade que tem. Jadir não mediu esforços para agredi-la com um murro que a fez perder os sentidos por alguns segundos. 

— Só assim mesmo para vocês calarem a merda da boca.

— Meu Deus, o meu nariz. – chorou. – o que vai fazer comigo, me violentar?

Jadir deu um sorriso enviesado retirando os óculos.

— Eu já fiz isso e sabe o que descobri? Você não era virgem como eu esperava. Confesso que fiquei desapontado.

— Socorro! – gritou.

— Daniele, Daniele, por favor, não force minha mão, eu não gostaria que encontrassem seu corpo com esse rostinho deformado. Então. Silêncio. Por favor.

A adolescente abriu o berreiro irritando ainda mais ao sujeito que resolveu ignora-la seguindo com o seu trabalho. Sem muita habilidade ele perfurou o braço da menina buscando uma veia. Por sorte conseguiu de primeira. O sangue começou a vazar, mas foi rapidamente aparado por uma tigela.

— Sem desperdício, Jadir, sangue é vida.

Daniele chorava e o xingava dos piores nomes possíveis. Jadir perdeu a paciência mais uma vez e a agrediu. A garota apagou.

— Bons sonhos, Daniele.

*

Antes de descer do carro Maura olhou para a fachada da futura casa de sua única filha. Alice realmente deu muita sorte em ter conhecido Douglas Fonseca, o herdeiro direto de um império inesgotável de fortuna. Ela desligou o motor e se preparou psicologicamente para mais um encontro com sua menina. Verdade seja dita, os encontros com Alice desde a morte de George, seu esposo, nunca terminaram bem, ao seu final  sempre há aquelas trocas de acusações insuportáveis por parte dela, Alice e a que doa mais; Maura sabe que ela está coberta de razão.

A chuva cessou já faz algum tempo, mas o vento segue circulando por aquela região açoitando árvores e outras plantações. O interfone foi acionado e em seguida ouviu-se a fechadura destravando.

— Seja bem-vinda, dona Maura, vamos entrando. – falou a funcionária da casa.

— Como tem passado, Claudiane? – abraçou e a beijou nas bochechas rosadas.

— Muito bem! – ruborizou.

— Me diga uma coisa. – sussurrou Maura. – comprou aquela lingerie e mostrou para o gato?

A mulher baixinha e atarracada ficou ainda mais envergonhada, mas gostou da pergunta. 

— Ele amou. Esperei ele se deitar, fui até o banheiro e a vesti. Quando o homem me viu daquele jeito...

— Eita! Festa no Apê. – gargalhadas.

Parada e de braços cruzados perto da porta Alice observa a resenha entre sua mãe e a funcionária que quando notou a presença de sua patroa quase teve um ataque do coração.

— Claudiane, prepare um lanche para a dona Maura Goulart, por favor.

A expressão da ex investigadora se transformou bruscamente. 

— Não precisa se incomodar, querida. Não irei demorar.

Silêncio. 

— A senhora vai ficar ai fora? Entre.

Se Maura tivesse condições de sumir daquele lugar e evitar novos desgastes, com certeza ela não hesitaria, mas agora é um pouco tarde para isso. Ela entrou na luxuosa casa e mesmo não sendo a primeira vez, Maura ainda se impressiona com cada detalhe cuidadosamente dispensado naquele lugar.

— Sente-se! – Alice olhou para a mãe. – tem certeza de que não quer nada, nem um suco?

— Sim, obrigado. - sentou-se e cruzou as pernas. – e o Douglas?

— No escritório. Fechando novos contratos.

Alice não pode deixar de reparar o quanto sua mãe envelhecera desde o catastrófico último encontro. As brigas entre elas não estão lhe fazendo nada bem, aliás, não estão fazendo nada bem para as duas.

— Acho que finalmente encontramos o lugar da cerimônia. Será na fazenda de um dos sócios do Douglas, o lugar é incrível.

— Que bom, minha filha. E... – Maura engoliu seco. – e sobre a nossa última conversa, já decidiu também?

Alice ajeitou os cabelos atrás das orelhas e abaixou a cabeça. É notório o quanto as duas estão se esforçando para que uma nova discussão seja evitada.

— Mãe! Eu já tomei a minha decisão. Terei o enorme prazer em tê-la lá, mas, apenas como convidada.

Agora foi a vez de Maura sofrer. O choro veio, devastador, mas foi contido. Ser uma mera convidada no casamento de sua única filha. É preciso ter estômago para suportar tal coisa, ainda mais vindo da pessoa que ela colocou no mundo, a causadora das noites em claro. 

— Tudo bem. Você é uma mulher adulta e quero acreditar que você saiba o que está fazendo. - levantou-se. – me acompanha até a porta?

Alice também estava chorando. 

— Sim!

Evidente que não foi isso o que Maura Goulart planejou para sua vida e muito menos para a vida de sua filha. O sonho de toda mãe é ver os filhos crescendo e descobrindo o mundo. O desejo dos pais é que, tanto o menino quanto a menina encontre alguém que viva os mesmos sonhos ou que pelo menos apoie suas aspirações. Ser uma mera convidada não estava nos planos e isso machucou bastante. Ao entrar no carro a policial aposentada desabou quase que aos berros.

— Meu Deus!

Foram os cinco minutos mais longos e dolorosos de sua existência e quando finalmente ela voltou a si não tinha sequer forças para dirigir. Maura olhou para o lado da janela do carona já avistando um barzinho. Quem sabe algo forte não a ajude a se recuperar?

*

Viver em Raposo é passar longos dias em contato com o que há de mais puro na natureza. É desfrutar da calmaria por meses É o lugar ideal para se refugiar daquilo que chamamos de inferno rotineiro de uma cidade grande. Mas em Raposo também existem pessoas e se há seres vivos, há também a presença da maldade. O ser humano e a maldade foram feitos um para o outro e não pense você que, ao decidir seguir com sua vida morando numa cidade pequena estará livre da crueldade sem limites do homem. Com a aparição de mais um corpo de uma pobre menina jogado num canto como se fosse um saco de lixo num ponto qualquer, os habitantes já colocam em dúvida se esse é mesmo o melhor lugar para se viver.

Os pais e amigos da jovem Daniele choram, se desesperam e protestam ao redor do corpo enquanto outros apenas observam ou matam a curiosidade em assistir o triste fim de uma vida que mal havia começado. Pobre Daniele. Em meio a aglomeração se encontra Vivian, chorosa, envolvida em lamentos. Daniele e ela nunca foram amigas, apenas conhecidas. Vez por outra elas trocavam elogios nas fotos postadas no Instagram. Ao vê-la naquela situação o seu coração foi quebrado em mil pedacinhos e para se poupar do sofrimento que já a consome, ela preferiu se afastar e acompanhar o trabalho a distância.

Vestindo um blazer preto, gravata azul escuro, camisa branca e calça jeans, Marcondes também acompanha a dura tarefa de seus companheiros da perícia. No fundo o investigador já sabe de todo o ocorrido e só estava ali aguardando a confirmação de suas suspeitas. O perito olhou para ele com o rosto torcido. Confirmado: o vampiro de Raposo atacou novamente. 

— Mais que merda! – disse baixinho.

Prato cheio para a imprensa local. Marcondes não sairia dali sem antes dar esclarecimentos ao que ele chama de os moscas de merda. 

— Mais uma vítima do vampiro, investigador? – perguntou uma repórter.

— Ainda não temos a confirmação.

— O que podemos esperar da polícia, visto que esse não é o primeiro caso?

— A polícia segue trabalhando. Raposo é sim uma cidade pequena, mas nenhum caso de homicídio e fácil de se resolver, mas acredito eu que estamos próximos de uma resolução. Com licença. 

O corpo foi levado em meio a gritos de desespero por parte dos familiares. Vivian está simplesmente anestesiada com tudo o que viu. Ela retoma o caminho de volta para sua casa e deu graças a Deus por estar viva. Daniele infelizmente não terá a oportunidade de crescer, casar-se ou fazer sua tão almejada viagem para Europa. Ao lembrar-se disso as lágrimas voltaram com força. Coitadinha, meu Deus! A tristeza a acertou em cheio de forma que ela não consegue dar mais um passo sequer.

— Oi! Posso ajudá-la?

— Ah! Oi. Eu estou bem.

Jadir reparou bem no corpo da menina. 

— Triste o que aconteceu com aquela menina. Vocês se conheciam?

— Sim! Torço para que ele seja preso e que apodreça na cadeia.

Jadir piscou algumas vezes se mostrando incomodado com a colocação da moça.

— Pois é. – enterrou às mãos nos bolsos. – bom, se não precisa de ajuda, eu já vou indo.

— Obrigado.

O Vampiro a esperou se distanciar e enquanto isso ele a admirava. Seu andar, a forma como balança os braços, o quadril, tudo nela é perfeito, é de dar água na boca.

— Gostei de você, mocinha. – sussurrou.

*

Maura Goulart não dormiu, ela simplesmente desmaiou. Tudo o que se lembra é de ter chegado em casa, tirado as botas, deitado no sofá e nada mais. Ao despertar ela demorou um pouco para situar-se. Para ela, George ainda se encontrava vivo e na cozinha preparando seu café da manhã. Não! George está morto. Infelizmente, morto. Aos bocejos ela ergueu seu tronco sentindo sua cabeça latejar. Maura precisa urgentemente de um café forte e sem açúcar. Alice lhe veio a mente atropelando todos os outros pensamentos e como era de se esperar ela sentiu vontade de voltar aquele barzinho e tomar todas. A casa se encontra em silêncio sepulcral. Depois de algum tempo de procura, o controle remoto da TV foi encontrado entre os travesseiros do sofá. Volume no máximo. Ela rumou até a cozinha se espreguiçando. O telejornal local informa sobre o mais novo caso do vampiro de Raposo. Maura voltou para a sala.

— Caramba! A polícia daqui é uma droga mesmo. – disse enquanto olhava para a foto da jovem Daniele no canto direito da tela.

Os bons e velhos tempos não voltam nunca mais e isso sim é uma triste realidade para alguém como Maura Goulart que possuí polícia correndo nas veias. Quando estava na ativa, todo o departamento a tinha como exemplo a ser seguido, principalmente no modo como lidava com os casos que lhe viesse às mãos. Pelo fato de ser mulher já é uma vantagem imensa. Mulheres são seres que observam e estão atentas aos detalhes e isso numa investigação faz toda diferença. Sendo mulher e ainda com um QI elevadíssimo, nada ficava oculto aos seus olhos.

A matéria foi finalizada com o depoimento dos pais da jovem Daniele e logo em seguida a posição do investigador responsável pelo caso, Marcondes de Oliveira.

— Ele pode até ser bonitão, mas como detetive está devendo. – disse bocejando.

Maura foi para a cozinha e de repente ela foi acometida de uma saudade estranha. Ao se ver ali, sozinha, em meio ao silêncio, seu coração se apertou. Certamente ela gostaria de poder voltar no tempo e consertar as cagadas que cometeu, principalmente as sacanagens que fez com George. O casamento não era um mar de rosas, mas também não era um pesadelo. George tinha lá seu lado romântico. Todo aniversário de casamento ele fazia questão de levar o café da manhã na cama para ela. Era legal. Tantas foram as vezes que Alice os flagrou aos beijos e abraços.

— Que nojo. – dizia ela.

Casa e vida vazia, foi o que restou para a investigadora Goulart. A melhor coisa a se fazer no momento é o café. Vida que segue.

*

Desde quando Vivian deixou a academia ela teve a impressão de que algo ou alguém a seguia. Por isso ela decidiu correr e sem olhar para trás. Em certo ponto da corrida a menina até pensou em ser coisa da sua cabeça pois ainda se encontrava bastante abalada com tudo o que havia acontecido. O Vampiro de raposo pode ser qualquer um, pensou. Vivian dobrou a esquina chamando atenção de meia dúzia de rapazes parados ali jogando conversa fora.

— Se ligam na loirinha. – disse um deles.

Jadir também dobrou a esquina andando normalmente com as mãos nos bolsos. Os jovens ainda seguiam olhando para Vivian quando ele passou. A vontade era de arrebentar a todos, mas provavelmente ele acabaria sendo espancado e deixado ali na calçada. Maníaco sim, burro não.

Vivian parou no portão de sua casa e sem perder tempo ela introduziu a chave na fechadura que já estava em mãos. Jadir passou tranquilamente do outro lado da rua.

O que eu seria capaz de fazer agora com você, rainha dos meus sonhos? Me afogaria em sua transpiração.

Outra vez ele foi acometido por uma excitação incontrolável que o forçou a apertar os passos até sua residência.


Mais tarde, refeita do aperto que achou que viveu, Vivian falava ao telefone com Maura que despejava toda sua melancolia nos ouvidos da jovem. Deitada debruço em sua cama, Vivian escuta com atenção as queixas e lamúrias de sua amiga cinquentona.

— Pois é, minha queridinha, serei uma mera convidada.

— Nossa, Maura, que coisa chata. Mas, você vai, não vai?

— Sim! – pausa. – ela é a minha única filha. Isso precisa acabar.

— Que bom que você pensa assim. – Vivian resolveu mudar de assunto. – fui a academia hoje. 

— Jura? E como os meninos se comportaram diante desse corpão?

Vivian ruborizou antes de responder. 

— Ah, para, há outras melhores do que eu.

— Que nada. Você é linda, meiga. Peço a Deus que lhe proteja todo santo dia. 

Ambas se emocionaram, mas não demonstraram.

— Mais tarde nos falamos, vou ajudar minha mãe com a comida.

— Dá um beijo nela por mim. Na boca. – caíram na gargalhada.

*

Marcondes está parado diante do corpo nu de Daniele e ele mal consegue acreditar no que vem acontecendo em Raposo. Até então o caso mais difícil de se solucionar foi o roubo da mansão de um empresário do ramo de aluguel de carros. Os marginais entraram durante a madrugada e fizeram a limpa. As câmeras de segurança registraram tudo, nem mesmo o mascote da família foi poupado. O pobre bichano foi levado pelo grupo que saiu tranquilamente sem resistência alguma. Não foi preciso ir muito longe para descobrir que um dos seguranças estava envolvido e que facilitara a ação.

Agora ele está ali, olhando para o cadáver tentando montar o quebra cabeça e perplexo por tamanha atrocidade cometida com a menina. O perito entrou na sala segurando uma prancheta e assoviando uma cantiga pra lá de antiga.

— Detetive Marcondes. 

— Como vai, Paulão, o mesmo de sempre?

— Pois é. O sangue foi retirado. – mostrou a marca no braço. – ela também sofreu violência sexual igual a outra, principalmente na região anal.

O policial apertava a mandíbula enquanto ouvia o perito falar.

— Sem sêmen também, imagino? – Marcondes se antecipou. 

— Exato. O cara é esperto.

— Certo. – olhou mais uma vez para o corpo. – linda, não acha?

O perito teve que concordar.

— Muito!

Marcondes caminhou apressadamente em direção à porta.

— Pensei que fosse ficar para um café. 

— Quem sabe mais tarde. Tenho que prender esse vampiro.

*

A loja de artigos para o lar mais cara de toda a cidade se encontrava lotada devido a grande promoção do dia. Vivian era uma das dezenas pessoas que se apertava por ali em busca de um jarro, tapete, quadros ou até mesmo alguns eletrodomésticos. Ela olhou para um conjunto de copos e decidiu levá-los.

— São perfeitos. – disse Jadir ao lado dela.

— Sim! – Vivian respondeu por pura polidez.

— Acho que vou levar aquele jogo de pratos também. O que acha?

— Uma pena que não estão em promoção. – ela olhou para o outro lado.

— Já ia esquecendo. Tome. É o cartão de minha agência para novos Youtubers. Aparece lá.

— Agência de Youtubers? nunca ouvi falar. Onde fica?

— Aqui perto. Estou indo pra lá agora. Temos uma gravação. Tá afim de assistir?

— Interessante. – olhou para o cartão. 

— Vamos, você vai gostar. – deu um sorriso enviesado.

*

Por mais que Douglas se esforce ele não consegue fazer com que sua noiva curta o momento da intimidade do casal. Prova disso é que, já faz algum tempo em que o empresário a possui em sua posição favorita e ela sequer exala um gemido.

— Qual é a tua, Alice? Eu aqui me matando e você ai, distante. – saiu de cima dela.

— Me perdoe, amor. Eu não estou tão disposta, hoje. – fechou às pernas e as encolheu.

— Poxa! Porque topou transar então? - levantou-se e andou em direção ao banheiro. — O que está rolando?

Antes de responder, Alice se enrolou no edredom.

— Minha mãe esteve aqui e mais uma vez a conversa não terminou bem. Essa situação está me consumindo.

Ouviu-se o barulho da descarga.

— Eu acho melhor vocês duas resolverem logo tudo isso, estamos a semanas do casamento. – voltou para a cama.

— Sinto falta do meu pai. Ele sim saberia o que fazer nessas horas. – repousou a cabeça no peito do noivo.

— Penso eu que, você deveria engolir o orgulho e pôr um ponto final nessa angústia. Viver dessa forma não é saudável. 

Alice permaneceu em silêncio.

— Promete pensar no assunto? – a beijou na testa.

— Prometo.

— Ótimo! Vou trabalhar mais um pouco.

Alice o segurou nas partes íntimas.

— Como assim: trabalhar mais um pouco? Não vamos terminar o que começamos?

*

Todo o seu corpo dói. Principalmente a cabeça. Vivian foi aos poucos abrindo os olhos, se esforçava ao máximo para tentar entender o que havia acontecido. Ela se encontra muito bem amarrada numa cama se solteiro e nua. O mínimo de esforço lhe causa dor e desconforto. O lugar possuí um armário devidamente organizado além de cheirar a desinfetante de pinho barato.

— Socorro! – falou baixo.

A porta foi aberta revelando o mesmo sujeito da loja de utensílios para o lar que a abordou. Jadir tinha nas mãos o material para coleta de sangue.

— Você é uma menina forte. Como se sente?

— Me tira daqui. - debateu-se.

— Isso não será possível. – deixou o material em cima do armário. – me diga uma coisa. Como se manteve virgem nessa idade?

Ao ouvir isso Vivian parou de se mexer. Imediatamente elas vieram. As lágrimas.

— Confesso que tive uma certa dificuldade para romper seu hímen, mas no fim deu tudo certo.

— Você, você... – chorou forte.

Jadir retirou os óculos apertando as vistas demonstrando impaciência. 

— Fique quieta! – disse repondo os óculos. 

— Me deixe ir embora. Por favor. 

Jadir sentou-se na beira da cama e passou a mão na coxa direita e depois tocou no seio esquerdo. Vivian a essa altura chorava aos berros. 

— Você é perfeita, querida. Uma pena. Não posso lhe deixar ir embora. 

— Por favor. Eu imploro. Eu não conto nada pra ninguém. Não me mate.

Jadir a ignorou. Ignorou seus gritos. Foi até o armário e pegou o material. Girou nos calcanhares. 

— Espero que o seu sangue seja tão saboroso quanto você é. 

*

Maura mergulhou num sono tão profundo, tão pesado e de maneira tão rápida que nem mesmo um terremoto de magnitude dez seria capaz de acordá-la. Esse é o resultado das doses exageradas do Bourbon que tomou para tentar esquecer a crise que vem vivendo entre Alice e ela. No sonho a ex investigadora se encontra deitada ali mesmo em sua cama transando loucamente com alguém que não era seu marido enquanto que a porta da frente é esmurrada. Maura acorda apavorada e há realmente alguém batendo na porta.

— Jesus! – disse saltando. – um minuto. 

Se trata da mãe de Vivian aos prantos, implorando por notícias da filha sumida.

— Ela saiu para comprar algumas coisas e não voltou mais.

— Calma, Mercedes. Vou dar uma volta na cidade. – pegou a chave do carro. 

— Ai meu Deus. Com tudo isso que vem acontecendo em Raposo. Meu coração não vai suportar. – chorou.

— Ela pode estar na casa de uma amiga. O celular deve ter descarregado. Vou dar uma olhada. 

— Posso ir com você?

— Não! Você precisa se acalmar. Fique em casa.

Não. Isso não pode estar acontecendo. Não com Vivian, sua amiga. Que sensação horrível. É preciso ter muito equilíbrio emocional e também uma certa dose de frieza. Foi o que Maura Goulart aprendeu em anos de carreira na polícia civil. Mas Vivian é especial. Ela aconteceu em sua vida quando tudo era trevas e solidão. Vivian foi a luz que a fez enxergar o caminho de volta. Não! Com Vivian, não. Por Deus.

Raposo é minúscula, mas mesmo assim é complicado encontrar alguém desaparecido. Maura parou o carro em frente a tal loja de utensílios para o lar e desceu com pressa. Entrou no estabelecimento em direção ao balcão. Sacou o celular. 

— Por gentileza. Por um acaso essa menina esteve aqui?

A balconista apertou os olhos. 

— A loja está em promoção, senhora. Muita gente passou por aqui. É complicado.

— Entendo. Obrigado. – disse olhando para a câmera de segurança. 

Goulart voltou para o carro com um péssimo pressentimento, com Vivian não, meu Deus. Ela percorreu toda a região até o dia dar lugar a noite e nada. Foi até a extremidade de Raposo onde só há mata. Também nada. Sua vontade era de sair gritando por Vivian até a mesma responder. 

— Me ajude, meu Deus. 


Perto das vinte e três horas, Marcondes verificava suas anotações dos dois últimos casos sobre o vampiro de Raposo quando seu estômago o alertou sobre o tempo em que ele está sem comer. Antes de descer do veículo ele pegou no porta luva as fotos das meninas mortas. Como ele gostaria que tudo isso não passasse de um pesadelo. Ele devolveu as imagens ao porta luvas e desceu.

Depois de ser sem hesitação alguma paquerado por uma mulher casada e ao lado do marido na barraca de cachorro quente, o detetive voltou para dentro do carro saboreando seu lanche. Seu celular tocou.

— Marcondes falando.

— Péssimas notícias. Mais um corpo de uma moça foi encontrado. Vou lhe passar o endereço. 

Marcondes sentiu vontade de chorar. 

*

Quanto vale a vida de um ser humano para o seu semelhante? Essas coisas não se aprendem na escola, a vida por si só ensina o quão valoroso é o fôlego dado pelo Criador. Para alguém como Jadir, a vida não passa de um episódio cruel da existência. Não passa de uma péssima fase a qual devemos responder na mesma proporção. Prova disso foi o ato de abandonar o pobre corpo da jovem Vivian em meio aos dejetos num canto qualquer da cidade. O local foi isolado por fitas amarelas e dois policiais militares fazem a segurança do corpo aguardando a chegada do investigador responsável. Marcondes parou o carro de qualquer jeito e desdeu sem ao menos fechar a porta.

Depois de se identificar ele pulou as fitas afim de se aproximar do cadáver.

— Jesus! – murmurou.

Lá está ela. Vivian, com toda uma vida pela frente. Força, vigor, garra, saúde e planos para o futuro. Tudo isso interrompido por causa dos desejos e taras de um lunático.

— Alguma pista? – Marcondes se dirigiu ao policial da segurança do corpo. 

— Nada!

Nesse momento os primeiros profissionais de imprensa a chegarem ao local já começavam seus trabalhos de cobertura, o que irritou bastante ao detetive. 

— Por gentileza pessoal. É bem provável que a família ainda não saiba do ocorrido. Deixem essa tarefa para a polícia. – vociferou.

Claro que o pedido de Marcondes não foi atendido. Algum jornalista irresponsável fez um curto vídeo e o publicou. Meia hora depois todos em Raposo já sabiam, inclusive os pais da vítima. Maura Goulart também. A policial aposentada chegou ao local  sentindo suas pernas fracas, o estômago embrulhado e com uma tremenda vontade de chorar aos berros. Mesmo com as luzes dos giroflexs atrapalhando sua caminhada até o local do corpo ela andou apressada quando foi barrada por um PM.

— Sou da família. – disse com nó na garganta. 

— Vou chamar o investigador. 

Goulart aproveitou para respirar fundo e controlar suas emoções, me ajude, Deus, Maura estava tão compenetrada no ocorrido e tão destruída por dentro que não viu e nem ouviu Marcondes bem a sua frente a chamando.

— Sinto muito, senhora...

— Maura. Maura Goulart. Sou ex policial. – mostrou o distintivo. – e o senhor?

— Marcondes. Prazer em conhecê-la, senhora Maura Goulart. Qual o seu grau de parentesco com a vítima?

Maura quase gritou “mãe" porém decidiu falar a verdade. 

— Uma amiga. Muito querida. – chorou. – tem alguma pista do desgraçado?

— Infelizmente, não.

Claro que Maura já esperava por esse tipo de resposta, na época em que estava na ativa ela precisou falar isso um milhão de vezes. Porém quando se está do outro lado, o lado doloroso e angustiante de quem acaba de perder um ente querido toda tristeza se transforma em raiva.

— Não é possível. Até quando iremos presenciar esses casos e perceber que vocês não sabem ao menos a identidade do miserável?

Marcondes engoliu seco. 

— Acalme-se, dona Maura...

— Não me peça calma, por favor. Por causa da sua ineficácia, por causa da ineficácia da policia dessa maldita cidade, vidas como dessa ai. – apontou para o corpo. – estão sendo ceifadas. Por favor. Façam alguma coisa. – gritou chamando a atenção de todos.

— É, senhora, por favor...

— Escute bem, detetive Marcondes. O senhor precisa dar uma resposta positiva a este povo, caso contrário eu estarei dando. O senhor me entendeu?

— Veja bem, eu...

Tarde demais, Maura já havia se retirado. Maura se retirou para que a sós ela pudesse de uma vez por todas vivenciar seu luto, sua dor. Enquanto isso, Marcondes também se afastou deixando com que os peritos terminassem o trabalho. Realmente ele precisa dar uma resposta a altura. Não será um maluco com sede de sangue que irá manchar sua carreira como investigador. Ele vem de uma família que desde sempre houve a existência de um agente da lei como membro. Seu bisavô e seu avô paterno foram policiais e não só isso, suas carreiras foram marcadas por prisões importantíssimas em Raposo. Agora chegou a sua vez de mostrar que o sangue dos Oliveiras corre em suas veias.

*

A pior noite da sua vida. O coração dói e bate acelerado. Maura não consegue dormir, pra falar a verdade, ela não quer. Rosto inchado, ruborizado, visão embaçada, tudo o que ela mais queria era acordar desse pesadelo e que Vivian se levantasse daquele monte de lixo e ficasse com ela.

— Me ajude, meu Deus. 

Com quem contar nessas horas? Alice? Lógico que não. George? Isso seria loucura, afinal, seu ex marido se encontra morto e enterrado. Mais que droga! Quem sabe uma bebida forte a faça sair dessa realidade de amargura?

Toda a família chora, se desespera e pede por justiça. As redes sociais explodiram com às hastegs exigindo uma ação rápida da policia, sem falar das lindas homenagens contendo as fotos das vítimas sorrindo. Emocionante. Antes de sair a procura de um bar aberto, Goulart abriu seu armário. Retirou algumas peças de roupas dobradas. No fundo do móvel ela pegou uma caixa de madeira frágil e a colocou em cima da cama. Entre fungadas e tosses secas a ex agente da lei abriu o objeto. Lá estão eles, exatamente como os deixou: uma Glock, seu distintivo, munição e um número de telefone escrito num pedaço de papel de caderno. Maura o pegou.

*

Ronaldo Paiva abriu os olhos ainda meio bêbado e se assustou com a mulher nua deitada ao seu lado.

— Mais que merda é essa?

Mesmo aos cinquenta e seis anos, Paiva ainda ostenta uma boa forma física e uma saúde de ferro, principalmente a sexual. Ele levantou-se correndo procurando por seu shorts. O encontrou no chão, do outro lado da cama onde a mulher dorme um sono pra lá de pesado. Ao se abaixar ele deu uma longa olhada no par de seios fartos, acomodados um sobre o outro na cama.

— Sensacional! – disse coçando os cabelos já bastante grisalhos. 

A mulher despertou sorrindo para ele.

— Bom dia. Acabei dormindo, mais não se preocupe, não vou cobrar por essas horas.

Paiva respirou aliviado.

— Quanto lhe devo então?

— Depende! – o segurou nas partes íntimas. – vai querer café da manhã na cama?

— Meu amorzinho, bem que eu gostaria, mas tenho que resolver algumas coisas. Fica pra depois, certo? – pegou a carteira e a pagou. – mais tarde eu te ligo.

Bem acima do peso a mulher branca e sardenta se vestiu. Deixou o apartamento com suas roupas curtas balançando sua protuberância de um lado para outro. Paiva quase mudou de ideia com relação a mandá-la embora. Depois de um relaxante banho matutino, o ex-investigador preparou-se para receber sua ilustre visitante. Seu último encontro com ela foi há muito tempo e na época às coisas não lhes eram tão favoráveis. Quando ele recebeu seu telefonema Paiva se sentiu um pouco estranho, como se revivesse tudo o que ficou no passado. Dois toques na porta. Ela chegou.

— Oi! – disse Maura tentando manter a normalidade. 

— Oi? – Ronaldo não conseguiu esconder sua reação. 

— Eu sei, não precisa disfarçar. Estou velha, descabelada e perdi alguns quilos sim. Mas, estou bem. E você?

Maura Goulart entrou no apartamento preguiçosamente olhando para todos os cantos.

— Eu vou bem. – fechou a porta. 

— Ainda contratando serviços de garotas de programa?

— O que, como sabe? – Paiva cruzou os braços. 

— Pelo cheiro de desodorante barato. Mas, eu não vim de tão longe para me intrometer em sua vida.

— Quer um café? – apontou para a cozinha. 

— Aceito.

— Ótimo. Assim podemos conversar melhor.

*

Marcondes parou seu carro na calçada em frente a casa dos pais de Vivian ainda relutante para se fazer tal visita. Se tem algo que ele não suporta nessa profissão é justamente o fato de ter que conversar com familiares enlutados. É torturante demais para ambos os lado. Ele foi recebido pelo pai, um homem de aparência serena. Seu sofrimento era perceptível logo de cara.

— Bom dia, senhor policial. 

— Acho que não é muito bom, não é?

— É a vida. Vamos entrando. 

O pobre pai que perdera a filha de forma cruel o conduziu com seu andar arrastado até o interior da residência onde sua esposa já aguardava sentada na ponta do sofá. Marcondes precisou que seu lado profissional fosse aflorado rapidamente. 

— Então. Me digam. A Vivian falou alguma coisa antes?

— Não! – disse a mãe. – ela saiu para comprar algumas coisas e não voltou mais. 

— Certo! Então, é bem provável que o tal Vampiro de Raposo a tenha abordado por lá mesmo. E me digam; ela era uma moça esperta ou do tipo que cairia na conversa de qualquer um?

O pai se afastou e parou na porta da cozinha. 

— Nossa filha era bonita e chamava atenção. Era muito estudiosa. Vivian era bastante esperta, não era qualquer um que a convenceria. Esse sujeito precisa pagar pelo que fez, investigador. 

— Com certeza. Estou disposto a virar essa cidade de ponta cabeça se preciso for, mas eu vou pegar esse cara.

— Nossa filha perdeu a vida. – chorou a mãe. – quantas ainda irão perder.

— No que depender de mim, nenhuma mais, senhora. – Marcondes se sentiu constrangido. – Só peço que confiem em mim, acreditem na polícia. Tudo bem?

Não houve respostas, só prantos. O policial deixou a casa com sua alta estima na altura dos pés.

*

Para uma noite pra lá de especial é necessário que haja trabalhos especiais. Alice não quer, e exige que nada, absolutamente nada saia errado ou falte na celebração e festa. Para isso ele convenceu seu noivo a contratar o melhor e mais caro serviço de buffet fora de Raposo. Mesmo sabendo dos belos serviços prestados pela empresa, a noiva insiste com seus intermináveis palpites ao lado de seu noivo.

— No altar não pode faltar flores e principalmente luzes, quero que as fotos fiquem dignas das festas de famosos.

— Anotado. – disse a dona da empresa. – acho que já podemos ver a questão das músicas.

— Ah, claro. Para a entrada dos padrinhos eu pensei em algumas das obras de Vivaldi. O que acha, amor?

— Fantástico! – enterrou as mãos nos bolsos. – será que agora posso fazer minhas observações?

Ambas riram.

— Só não esqueçam do champanhe. Quero brindar com ela assim que o reverendo disser: já pode beijar a noiva. Certo?

— Ótimo. Tudo anotado.

Alice e Douglas deixaram o local onde daqui a poucos dias eles estarão contraindo núpcias. Desde que chegaram ela o sentiu um tanto quanto preocupado.

— Aconteceu alguma coisa, amor?

— Eu e que pergunto; aconteceu alguma coisa? E sua mãe? – sacou as chaves.

— O que tem minha mãe?

— Pretende mesmo casar-se sem ao menos ter a bênção da mulher que lhe colocou no mundo?

Alice pensou em dar uma boa resposta ao noivo, do tipo: o que você tem a ver com isso? Mas Douglas não lhe deu chance.

— Eu te amo, Alice, mas não sei se quero viver com alguém que não leva em consideração a própria mãe.

*

O passado jamais voltará, certo? Errado! Para Maura Goulart e Ronaldo Paiva, sim, ele é capaz de voltar e ainda mais intenso. Só o simples fato de estar novamente ocupando o banco do carona e poder ver sua ex-parceira dirigindo rumo a cena do crime, para Paiva é como morrer e ressuscitar.

— O que tanto você olha para mim? – perguntou Maura de olho na estrada.

— Isso é demais, não acha?

— Isso o que?

Ronaldo sorriu.

— Não se faça de desentendida, Goulart. Sabe muito bem do que estou falando. 

Maura não resistiu.

— Verdade. – olhou para ele. – fizemos muita coisa juntos. E isso inclui as merdas também. 

Ambos caíram na gargalhada.

— Lembra aquela vez quando fomos averiguar aquele hotel de luxo na suíte presidencial? – Paiva ruborizou ao perguntar. 

— Meu Deus, até hoje eu não acredito que eu fiz aquilo. Corou também. – você era mesmo um maníaco sexual.

— Eu? Foi você que não resistiu ver aquela cama enorme.

Silêncio.

— Na verdade eu não resisti ver aquele espelho maravilhoso no teto.

Mais risadas.

De repente Maura cessou com o riso quando foi acometida por uma tristeza que a obrigou a jogar o veículo no acostamento. Paiva sabia o que viria pela frente e por isso não disse nada. Não houve coragem em Maura para ao menos olhar seu ex-parceiro enquanto falava.

— Sabe o ditado “quando se perde é que se dá valor"? Nunca fez tanto sentido.

— George, não é?

Maura assentiu.

— Acho que eu já disse uma vez, mas vou repetir. Sinto por ter ajudado a estragar tudo. Na boa.

— Não sinta. Você era solteiro, não tinha compromisso algum. Você estava apenas curtindo uma aventura, mas eu... eu sim tinha o que perder. Eu tinha um esposo, filha. Uma família, e no entanto...

— Jogou tudo fora. – Paiva segue olhando para ela.

Goulart refletiu e finalmente teve coragem para olhá-lo nos olhos.

— Joguei.

Eles permaneceram em silêncio até o ex parceiro quebrá-lo.

— Vamos lá pegar o vampiro?

— Vamos. – saiu com o carro.

*

Maura preferiu que Ronaldo ficasse hospedado num hotel ao invés dele passar esse tempo em sua casa. Ela não estava disposta a ouvir certos tipos de comentários e tão pouco que Alice soubesse que Paiva anda dormindo com ela. Isso seria a gota d'água. Ela o deixou no estabelecimento e antes de sair fez questão que ele ficasse por dentro de todo o caso.

— Tem certeza de que esse sujeito ainda está por aqui? – perguntou abrindo seu notebook. 

— Algo me diz que sim. E também acho que ele está em busca de novas vítimas.

— Certo. Temos que ver o que a polícia ainda não viu. – falou digitando.

Goulart anuiu.

— Esse cara gosta de meninas da idade de ensino médio então vamos partir desse ponto: o que meninas nessa idade curtem fazer.

Maura se colocou ao lado dele.

— Fotos, vídeos... – Paiva lhe mostrou o mapa da cidade. – todo mundo quer ser visto hoje em dia. As pessoas se matam por um punhado de seguidores ou por visualizações.

Goulart apertou os olhos. 

— Entendeu?

— Entendi. – Maura se afastou. Ela já havia esquecido o quanto Paiva era competente. – vou deixar você descansar e mais tarde passo aqui para as buscas.

— Ao seu comando.

*

Marcondes desceu a ladeira a pé porque queria espairecer um pouco sua mente. Sua última visita não lhe fez bem. Esse dia está sendo horrível. Quando alcançou metade da rua seu celular tocou, era seu superior. 

— O prefeito acabou de me ligar exigindo uma solução para esses crimes imediatamente. Segundo ele, isso vem atrapalhando a questão do turismo.

— Zero preocupação com o ser humano. – parou e avistou seu destino.

— Vá até a prefeitura e diga isso pra ele. Já chegou ao local?

— Sim!

— Ótimo! Assim que terminar ligue pra mim.

— Sim, senhor.

Uma cobrança nunca é bem-vinda, ainda mais quando ela acontece injustamente. Todos sabem que se trata de uma investigação complicada, sem pistas, onde o tempo inteiro o assassino parece querer testar seus limites e os limites da lei. Por incrível que possa parecer, essa cobrança apareceu em boa hora, Marcondes não estava com a menor vontade de seguir com o trabalho. Nada como um empurrãozinho para nos fazer cair na real.

No local não havia interfone e muito menos campainha. O jeito foi fazer a moda antiga mesmo.

— Ô de casa?

O investigador não precisou chamar outra vez. Uma jovem senhora o recebeu com uma certa desconfiança o olhando nos olhos. 

— Sou da polícia, investigador Marcondes. Sua filha está? – lhe mostrou a identificação.

— Sim. Está sim.

— Será que eu posso conversar com ela?

A mulher pareceu aflita. 

— Deve ser sobre a coitadinha da coleguinha dela, não é? Pode entrar. 

Não foi uma conversa fácil. Por várias vezes Marcondes precisou parar e dar um tempo para que a adolescente pudesse se recompor. Pode ter sido difícil, porém o policial deixou o local com uma informação valiosíssima.

*

Maura lia com atenção um artigo na Internet sobre os acontecimentos em Raposo enquanto que Paiva dirigia a menos de 40 observando o que aquela cidade tinha de melhor. Muito verde, praças, lojas, academias e até um cinema fora do shopping. E sim, é claro às mulheres. Elas sim fazem o espetáculo acontecer.

— Você não tem jeito. – disse deixando o telefone em cima do painel.

— Acho que vou querer passar mais um tempo aqui. 

— Fala sério! – Maura olhou para a janela a seu lado. – pare o carro.

— O que foi?

— Lembra do investigador que lhe falei?

— Marcondes, eu acho. – estacionou.

— Ele mesmo. Vamos lá falar com ele.

O agente havia acabado de pedir seu lanche quando foi abordado pela dupla, cada um de um lado.

— Lembra de mim, detetive?

— Como poderia esquecer. – fechou o semblante. 

— E em que pé estamos?

Antes de responder Marcondes olhou para Paiva que se apresentou.

— Bom! Estamos progredindo.

— O que sabe até agora? – foi a vez de Ronaldo perguntar.

— Mais o que é isso? - afastou-se Marcondes.

— Veja bem, policial, não temos nada contra você, mas quero que saiba que o meu parceiro e eu estamos correndo atrás também...

— Como assim, correndo atrás, isso é trabalho da polícia...

— Somos policiais. Aposentados, mas somos. – completou Paiva.

— Só me faltava essa. – disse rindo. – Por favor, eu levo muito a sério o meu trabalho, não tenho tempo para brincar com justiceiros...

Goulart olhou para Paiva.

— Justiceiros? Acho que essa não é a palavra certa. Que tal parceiros que não estão mais na ativa lhe auxiliando? – Maura propôs.

O pedido chegou, mas Marcondes já havia perdido a fome.

— Mais do que ninguém, vocês sabem que investigar por conta própria pode acabar mal e atrapalhando o processo. Recomendo que parem agora...

— Se não? – Paiva retrucou.

Marcondes não sabia o que sentir, se gritava, se chorava ou se partia pra cima daquele coroa com pinta de garanhão.

— Por favor, pode embrulhar para viagem? – pediu para a balconista. 

— Peço que pense no assunto, detetive. Vivian era como uma filha pra mim e esse tal vampiro não pode sair dessa impune.

— Ligue caso mude de ideia. – Ronaldo deixou seu cartão no bolso de sua camisa.

Na saída, ao ocuparem o carro, Maura fez um questionamento. Ela pensou em ter passado demais do ponto com o policial.

— Claro que não. – Ronaldo ajeitou o cinto. – ele vai nos ligar.

*

Nos raros momentos de reflexão sobre sua vida, Jadir Primo observou que, nunca se martirizou por ter sido uma criança infeliz. Jamais culpara seus pais por isso e sempre encarou o fato de ter que se virar para tocar sua existência com determinação. Sua mãe sofria de um sério distúrbio e por isso deixou que seus rebentos ficassem soltos quase que o dia inteiro e ele por ter sido o mais novo foi o que mais sofreu com isso. Jadir era descartável, mas nunca se sentiu assim. Era muitas vezes tratado como uma pessoa desprovida de qualquer tipo de sentimentos, porém, o que o fazia seguir em frente era justamente eles. A única coisa que Primo temia era exatamente o que ele é hoje. Não teve jeito.

Ao voltar do banho, Jadir já estava pronto para uma nova rodada de prazer solitário diante de vídeos com suas meninas seminuas. Mais uma vez o monstro dentro dele será alimentado. Como ele gosta disso, como ele se permite mergulhar nesse mundo de ilusão erótico. Ao se deleitar assistindo meninas sensualizando, Jadir tem sua tara acionada o informando que já passou da hora de agir novamente.

*

Sepultar alguém nunca será algo fácil de se fazer. Não importa o quanto a pessoa representa, nunca será simplesmente um corpo sendo deixado para apodrecer debaixo da terra. O coração de todos os presentes naquele lugar hostil, bate em favor de um único propósito: Justiça. Se nada for feito, infelizmente Vivian não será a última jovem a ser depositada ali. Maura Goulart se manteve firme, quem olha para ela vê uma mulher de expressão fria e nos olhos chamas pedindo vingança. Ao seu lado os pais da falecida arremessam flores dentro da sepultura num quadro duríssimo de se presenciar. Vá com Deus, Vivian.

Na saída do cemitério, parado ao lado de um carro funerário, Marcondes engole seco várias vezes ao ver Maura se aproximando. Antes de lhe estender a mão para prestar suas condolências, o detetive pigarreou.

— E então, investigador?

— É...

— O senhor não está cansado de ir a sepultamentos de jovens, não? – Maura arqueou as sobrancelhas.

— O que a senhora acha?

— Então nos deixe ajudar a pegar o canalha.

— Certo! O tal vampiro possui um modus operandi. Ele engana as suas vítimas e as atrai para o local da execução. – Marcondes observava às pessoas deixando o cemitério enquanto falava.

— E temos um rosto, alguém sabe como ele é? – Maura não escondia sua excitação.

— Conversei com uma das amigas da vítima e ela relatou alguma coisa. 

Goulart sacou o celular.

— Legal. Me passe tudo.

*

Mais tarde, Ronaldo Paiva analisa exaustivamente um vídeo de uma câmera de segurança que conseguiu na Internet. As imagens mostram a praça da cidade bem movimentada por gente praticando exercícios, vendedores ambulantes e outros transeuntes. A verdade é que Paiva não sabe o que e nem para onde olhar, porém sente que precisa observar cada movimento, cada gesto. Um bom detetive precisa conferir e não ficar na sugestão somente. Maura chegou e não estava sozinha, trouxe sua empolgação junto com ela.

— Nossa, mas que imagem mais quente. Um coroa, forte, bonitão, sentado na frente do computador só de cueca.

— Não sabia que viria.

— Vida que segue, meu amigo. O que está fazendo, assistindo pornô?

— Não seria má ideia. Mas, não. – voltou a olhar para o monitor.

— Acho que temos um rosto. – se aproximou um pouco mais. – imagens da praça?

— Sim! Eu já assisti duas horas de gravação, mas não sabia o que olhar, mas agora...

— Certo. Homem comum, cabelos ralos, óculos, viu algo assim?

— Não, mas vou seguir vendo o vídeo.

Maura ergueu-se.

— Obrigado! Estarei em casa caso haja alguma novidade. 

— Você precisa mesmo ir para casa? – Paiva girou a cadeira. – eu pedi uma pizza, tá afim?

Ele continua sendo o mesmo sedutor de sempre, Maura não conseguiu dizer não. Ela passou a noite com Ronaldo que investiu pesado e o resultado disso foram três horas de sexo intenso. Foi maravilhoso poder senti-lo dentro dela ao mesmo tempo em que a culpa e o ressentimento caíram no esquecimento.

— Estou velha, mas ainda dou um caldo. – falou pegando seu maço de cigarros.

— Bota caldo nisso. – se virou ficando de barriga para cima. – posso lhe fazer uma pergunta?

Maura sorriu acendendo o cigarro.

— Bom, se não for uma do tipo: e aí, foi bom pra você? Até pode.

— Como estão as coisas entre Alice e você?

Goulart sorveu uma boa quantidade de fumaça.

— Pior impossível. – soltou. – para você ter uma ideia, ela não quer que eu entre com alguém na cerimônia. Serei uma mera convidada. Acredita?

— Ela não te perdoou mesmo.

Sorveu mais fumaça. 

— Não! Mas, se há uma culpada nessa história, esse alguém chama-se Maura Goulart.

— E Ronaldo Paiva. – completou.

— Nada a ver. As coisas já não estavam bem entre George e eu. Brigas, desentendimentos, trocas de acusações por causa da má criação da Alice, entre outras situações desgastantes e aí...

Ronaldo se virou para ela.

— E ai?

— Ronaldo Paiva aconteceu em minha vida. Lindo, cheiroso, inteligente e bom de cama. Não resisti. – sorriu.

— Topa um segundo tempo?

— Só se for agora. – rolou pra cima dele.

*

Quem estará sentado, assistindo a cerimônia e em seguida enchendo a pança na festa, não tem a menor ideia do que acontece nos dias que antecedem o evento. Alice tem dormido tarde e acordado muito cedo para aproveitar bem o dia a fim de não cair no que chamamos de inevitável, “no final sempre falta alguma coisa” isso seria terrível para alguém como ela. Por isso, a filha de Maura Goulart fez questão de ser uma das primeiras clientes na loja de flores. Às nove e meia Alice estava saindo do estabelecimento quando entraram duas mulheres de braços dados. A mais velha, provavelmente a mãe logo se encantou com a variedade de flores e suas cores. A mais nova abriu um largo sorriso ao ver a reação de sua suposta mãe.

— Viu, eu disse pra senhora. O lugar é fantástico, não é?

— Mágico! – seguia maravilhada.

Alice disfarçou tocando numa Margarida.

— Filha. Pode deixar. Quero que seja a noiva mais florida de todas.

Elas foram direto para o balcão empolgadas. Alice prendeu o choro até sair da loja. Douglas estava distraído mexendo no telefone quando sua noiva entrou no veículo  aos prantos.

— O que foi, amor, aconteceu alguma coisa? – olhou para fora do carro.

— Você está certo. Sempre esteve.

— Sobre? – acariciou seus cabelos.

— A vida é breve demais para deixarmos com que coisas pequenas e más ocupem esse curto tempo. O que aconteceu entre meu pai e minha mãe passou. Hora de escrevermos uma nova história. 

Douglas estava emocionado.

— Quer dizer que teremos dona Maura Goulart no papel principal em nosso grande dia?

Alice riu limpando as lágrimas. 

— Sim, sim. Claro.

— Ah, eu te amo, meu amor. – a beijou.

*

Marcondes não está se sentindo nenhum pouco confortável em ter como parceiros dois ex investigadores. Lógico que toda ajuda é bem vinda, mas em se tratando de agentes da lei o orgulho sempre fala mais alto. E mais um agravante, caso descubram que ele aceitou auxílio de policiais fora da ativa, Marcondes já pode dar adeus a sua carreira.

O Vampiro de Raposo vem sendo uma insistente pedra em seu sapato e não há como seguir sem antes tirá-la de lá. Ao deixar o gabinete do delegado com novas pressões lhe sufocando, Marcondes precisou sair do DP de Raposo para respirar ar puro e comer alguma coisa. Na saída seu celular tocou. 

— Pronto!

— Ronaldo conseguiu algo importante. – disse Maura. – Estou te enviando uma imagem.

— Pode mandar.

Uma nova mensagem. Tremendo, Marcondes a abriu e viu a foto de um homem com características que batem com a descrição da colega de uma das vítimas. Tem que ser ele. O investigador agradeceu voltando para o interior do departamento policial.

*

Enquanto a lasanha congelada era aquecida no micro-ondas, Maura terminava seu banho após transar mais uma vez com Paiva no hotel. Goulart vem vivendo intensamente nestes últimos dias e a faz recordar da época em que enganava os pais dizendo que passaria a tarde estudando na casa da colega de escola. Maura fazia sexo diariamente com um menino nerd e só não engravidou por sorte.

O micro-ondas a alertou sobre o término da preparação do alimento. De roupão rosa bebê ela andou até a cozinha quando ouviu a campainha. Justo na hora da comida.

Ao ver a filha e o genro parados, sorrindo para ela, Maura precisou piscar algumas vezes para se certificar de que não se tratava de uma miragem.

— Mãe!

A emoção tomou conta do trio. Todos entenderam o que aquela visita representava. Eles se abraçaram, Maura não parava de beijá-los.

— Entrem. Não reparem a bagunça. 

— Hum, que cheirinho bom. – Douglas esfregou as mãos.

— Lasanha congelada do mercado. – disse ruborizada.

Alice segurou firme às mãos da mãe.

— Mãe, eu sei que não foi nada fácil  e que tudo o que passamos, você, o pai e eu deixou uma rachadura em nossa relação. Mas eu acho que está na hora de escrevermos uma nova página. Que tal?

Mãe e filha choraram juntas e com as testas coladas uma na outra. Douglas vibrava.

— Quero que entre maravilhosa em meu casamento, junto com o primo do Douglas. 

— Exatamente, dona Maura. Então, vamos lá comprar um vestido?

Maura não sabia o que sentir. 

— Vá lá se vestir. – completou Alice. – depois iremos jantar num lugar bem legal.

*

Antes de finalizar o processo, Jadir confere minuciosamente o corpo da jovem apagada no sofá depois de apanhar e perder a consciência. A menina negra, esguia, lutou e relutou com todas as forças, mas não foi capaz de manter a resistência contra um inimigo determinado. Ela acabou sendo vencida por um mata-leão de forma covarde. Jadir a pegou nos braços e a levou para seus aposentos onde a despiu. Em seguida o vampiro amarrou seus pés, pernas e braços na cama. Pronto! Eis que é chegado o momento de saciar sua sede, sua tara por meninas em estado de vulnerabilidade. O Vampiro quer sexo, sangue e não importa o quanto alguém sofra com isso. O quanto a vida de alguém tão jovem seja afetada pelos seus atos. O importante é a sua satisfação carnal e sim, Jadir Primo não medirá esforços. 

Ao terminar de despejar sobre o corpo sadio da jovem toda sua carnalidade desenfreada, Primo recolheu-se para o outro cômodo da casa a fim de retomar suas atividades. Ele se serviu de uma dose de aguardente e sentou-se em frente ao computador sob os gritos desesperados vindos do quarto ao lado.

*

Para desespero de Marcondes, o delegado levou até sua mesa o boletim de ocorrência onde havia relatado o sumiço de Noemi Siqueira.

— Será possível isso? – deixou o papel sobre a mesa.

— Mas... – Marcondes sentiu um gosto amargo na garganta.

— O tempo está se esgotando e minha paciência também, Marcondes. Espero que esse seja só mais um caso onde a menina foge com o namorado para o quinto dos infernos, porque se o corpo dessa moça aparecer jogado entre sacos de lixo e sem sangue algum eu...

Marcondes já havia disparado corredor a fora.

De dentro do carro, o investigador ligou primeiro para Maura a informando sobre o novo caso e depois para Ronaldo Paiva.

— Você está indo para a residência da menina sumida?

— Não! Algo me diz que o vampiro reside perto da praça onde mostram as imagens dele que vocês  me enviaram.

— Isso é perder tempo, o que vai fazer, bater de porta em porta? Há muitas casas ao redor.

— Nem que eu tenha que fazer isso, eu vou encontrar esse sujeito. Não posso deixar que ele mate mais alguém.

— Você é quem sabe.

Ronaldo encerrou a conversa. Marcondes acelerou sem se preocupar com o trânsito confuso já se formando na via.

*

Jadir voltou para o quarto segurando uma bolsa de sangue e o sugava com um canudo articulado o tomando como se fosse um delicioso drink. Noemi entrou em pânico diante de tal bizarrice.

— Entendeu agora porque sou conhecido como o vampiro de Raposo? Esse sangue pertenceu à minha última vítima.

— Seu doente, nojento.

O golpe no rosto infante foi potente e inesperado. Noemi ficou paralisada por alguns segundos.

— Como ousa me chamar de doente? Você não sabe nada sobre mim. Não conhece minha história. – falou aos berros.

— Enfia sua história na bunda seu doente. – vociferou.

Jadir soltou uma risada forçada e abaixou as calças.

— Quer saber de uma coisa. Quero que me xingue cada vez mais.

*

Não bastasse a dor física, agora Noemi precisa lidar com a emocional também. Jadir a violentou e não apenas uma vez como normalmente faz. O desgraçado a machucou por dentro e por fora, cuspiu em sua face e a xingou dos piores nomes possíveis, todo esse inferno enquanto a invadia, a estuprava.

— Eu não costumo agir assim, mas você despertou um desejo que a muito tempo eu não sentia. – subiu as calças.

— Quero ir ao banheiro. – chorou.

— Sério? Mas do que adiantará? – pegou os instrumentos de coleta de sangue.

— Por favor. Eu preciso mesmo ir ao banheiro.

Primo controlou sua irritação girando nos calcanhares.

— Vai fazer o número um ou dois? – sorriso de sarcasmo.

Noemi fechou os olhos.

— Bela resposta. Tudo bem. Para toda uma regra há exceção. – começou a desamarra-la. – o banheiro fica lá na cozinha e...

Noemi mal conseguia caminhar e estava nua.

— Nem pense em fugir ou me atacar. Quer passar por tudo aquilo mais uma vez?

A belíssima moça negra passou pela sala onde havia uma janela com grade externa. Ela estava fechada e o vidro era do tipo canelado. Noemi não tinha a mínima ideia de onde estava, mas precisava fazer alguma coisa. Esse miserável pode até me matar, mas não será assim tão fácil. Havia uma cadeira mal posicionada no canto da sala, logo lhe ocorreu um ideia. Ela foi até o banheiro, mas não entrou, o canalha pensou em tudo mesmo. Sem porta e sem iluminação também. O plano poderia até não dar certo, mas a ação precisava ser feita. Ela puxou a cordinha da descarga e voltou para a sala. Pegou a cadeira e a arremessou contra a porta estilhaçando o vidro enquanto gritava por socorro. Jadir Primo apareceu a fuzilando com os olhos.

— Que estupidez.


Na estreita rua de barro onde localiza-se a casa, no exato momento em que Noemi quebrava o vidro e gritava, um casal de idosos passava voltando da feira na cidade. Ambos se assustaram.

— De onde veio isso? – perguntou o velho com seu típico mastigar.

— Ai, minha Nossa Senhora. – a idosa olhou para a casa. – veio de lá, mas ninguém mora ali há anos.

— Parecia que quebravam vidros, não foi? – segue com a mastigação.

— Sim. E gritaram por ajuda. Vamos lá ver o que foi?

— Tá doida, mulher, vamos embora. – deu as costas.

— Vou ligar para a polícia.

O velho seguiu seu rumo mastigando e resmungando enquanto sua senhora falava ao celular.

*

Noemi foi espancada, mil vezes pior do que no início de seu martírio. Os golpes foram tão fortes e precisos que já não era mais possível reconhecê-la. Jadir a colocou na maca e de maneira sórdida ele a preparava para a coleta de seu sangue cantarolando uma canção antiga. Com maestria ele introduziu a agulha em sua veia e sem rodeios sugava o líquido vital direto para a boca, como se estivesse saboreando um delicioso milk shake. Seu sangue é perfeito, fazendo jus a sua aparência. Noemi aos poucos voltava a consciência, mas a gravidade dos ferimentos a fazia voltar para a escuridão do inconsciente. Jadir tem sua alimentação interrompida por barulhos vindos do lado de fora, na parte de trás da casa para ser mais exato.

— Malditos bichos.

Como persistira o barulho, Primo resolveu conferir de perto deixando o sangue descer pelo tubo manchando o chão.

— Já volto!

Jadir não se preocupou em por uma camisa, destrancou a porta dos fundos onde só ha mato alto e árvores como eucaliptos e amendoeiras. Em todo esse tempo em que atrai moças para a execução de seus “serviços” ninguém jamais pisara naquele lugar. Ambiente perfeito para o Vampiro de Raposo agir sem ser incomodado. Jadir caminhou até perto das árvores na esperança de encontrar algum cão ou vaca como já houve outras vezes, mas fora surpreendido por um jovem bonito lhe apontando uma pistola.

— Opa! Você me assustou.

— Você está preso, vampiro de Raposo. – Marcondes rosnava.

— Mas, que negócio é esse de vampiro de Raposo, do que está falando.

Marcondes deu uma ligeira olhada no aspecto de Primo e notou pequenas manchas de sangue nos cantos da boca e nos sapatos.

— Chega de conversa, me leva até a menina. – berrou.

— Que menina? você está equivocado...

Jadir Primo a primeira vista não passa de um cinquentenário que passou sua vida inteira frequentando lanchonetes devorando frituras, massas e engolindo cerveja barata. Prova disso é sua barriga bem acentuada apesar de magro. Mas isso fica apenas no que se refere a aparência. Marcondes foi surpreendido por um gesto rápido que o desarmou ao mesmo tempo em que foi golpeado no rosto. O ferimento começava a sangrar quando o policial foi mais uma vez socado. Marcondes caiu ao perder o equilíbrio.

— Fique no chão. – gritou Primo.

Logico que alguém como Marcondes não iria jamais obedecer ordens de um assassino, louco e frio. Claro que não. O investigador ainda tentou chutá-lo no joelho, porém não contava com a rapidez do vampiro.

— Seu desgraçado, vou sugar seu sangue também.

O chute acertou em cheio o rosto do agente. Marcondes apagou, mas as agressões seguiram. Vendo que seu oponente se encontrava fora de combate, Jadir correu para dentro de sua casa. Sua intenção no momento era executar sua vítima e sumir no mundo. Ele correu até o quarto e...

— Mais que merda. 

Noemi não estava lá. Havia rastro de sangue que iam até o cômodo vizinho, como ela conseguiu escapar? Ao voltar para sala ainda sem entender muito bem o que estava acontecendo, o nariz de Primo sofreu um poderoso golpe dado pela culatra de uma calibre doze.

— Argh! – o grito foi gutural.

Jadir caiu ajoelhado segurando o rosto coberto de sangue. Ronaldo Paiva o acertou outra vez.

— Vai morrer seu bosta. – engatilhou a arma.

— Não, Ronaldo. Acabou. – Marcondes apareceu na porta da cozinha.

Paiva olhou para o agente e depois para Jadir que gemia deitado no chão. Ronaldo o chutou nas costelas.

— Já chega, cara. – gritou Marcondes.

Ronaldo foi para fora. Ao passar perto do policial ele disse.

— De nada, investigador. – desdenhou.

Noemi foi colocada dentro do carro auxiliada por Maura. O tempo todo ela pensava em Vivian e nas outras meninas que infelizmente não tiveram a mesma sorte.

— Fique tranquila, querida. – disse acariciando o rosto marcado da jovem.

Paiva olhou ao redor ainda com a adrenalina correndo a mil em suas veias.

— Inacreditável. Que sujeitinho cabuloso.

— Nojento também. – Maura cuspiu. 

— Garanto que ele ainda vai sair como maluco disso tudo. Minha vontade é de entrar lá e estourar os miolos dele. – olhou para a doze em suas mãos.

Lhe dando um afago a ex-policial declarou.

— Calma. Marcondes irá resolver tudo. – o beijou. – grata por tudo.

— Valeu!

*

Ao entrar no templo cuidadosamente ornamentado, repleto de convidados mais do que especiais se alegrando junto com ela, Maura Goulart pode sentir na pele o que outras milhares de mães já sentiram. Ver a filha num vestido radiante, "angelicalmente" produzida, conduzida ao altar  e entregue ao homem que escolhera para passar a vida é simplesmente a concretização de um sonho. Alice disse sim ao seu noivo visivelmente emocionado e cheio de boas expectativas. A cerimônia foi breve como assim exigiu o casal. Na saída foram ainda mais ovacionados e abençoados por seus pais. Maura segurou nas mãos da filha.

— Seja feliz e faça seu esposo feliz. Promete?

— Prometo!

Em Raposo a vida segue seu fluxo dia após dia, semana após semana até o dia em que tudo não será tão normal assim. FIM.















Um comentário:

  1. Muito bom! Estou por aqui colocamos as leituras em dia 🤓

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