quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Bala Negra - Final

 


BALA NEGRA

Um mês, um conto

 

Quem disse que não séria fácil ser uma policial acertou em cheio. Realmente não é. E quem disse que séria difícil errou por muito. Ser uma policial do calibre de Marli, chega a ser quase um sonho impossível. Se ela chegou até aqui, foi por puro mérito. Ela tem coragem, é determinada e possui um espírito de liderança fora do comum. Para se ter uma ideia, há homens que preferem trabalhar com ela. Claro que nem sempre tudo foi assim. A menina pobre, moradora de comunidade enfrentou sérias dificuldades no início de sua brilhante carreira no departamento policial. As barreiras foram duas, no caso. Uma, Marli é negra. Apesar de sua beleza natural exótica, ela percebia olhares não muito amistosos, questionadores. E outra, por ser mulher. O ambiente no meio policial, podemos dizer que em sua maioria é composto por homens. Todas essas dificuldades ela venceu trabalhando. Aos poucos ela foi conquistando seu espaço e mostrando seu valor. Hoje em dia, ninguém mais imagina aquele Departamento sem ela. Até mesmo delegado Cardoso reconhece isso.

A prisão de Nilton Lins pode até lhe render alguma premiação, subida de cargo ou até mesmo fama, coisa que do fundo do coração ela não gostaria que acontecesse. Colocar Lins na cadeia a fará respirar novamente. Com certeza ele não é o seu último inimigo, mas é o sujeito que de forma indireta arrancou dela o grande amor. Que destruiu sua vida sentimental. Nilton não tem consciência alguma disso, mas sofrerá as consequências. Uma mulher estressada tem um poder de destruição de magnitude mil.

Outra mensagem no WhatsApp.

“Lins está a poucos metros daí, senhora.”

Porto digitou rápido demais e enviou não dando bola para os erros de digitação. O que importa é que a mensagem foi respondida e que ela está ciente do que está acontecendo. Esse fato a fez lembrar de Pedro, de como isso o incomodava. Ele como professor universitário fazia questão de escrever certo e não tolerava quem fazia ao contrário. Analfabetismo funcional não era admitido por ele de forma alguma.

- A pessoa que sabe ler e não ler é pior que o pobre do analfabeto. E a pessoa que tem instrução e sabe escrever e mesmo assim não liga para os erros de escrita, sinceramente, deveria sair do meio dos analfabetos funcionais. Você não tem o direito de fazer parte desse grupo. – dizia em suas aulas.

Isso gerava discussões intermináveis entre o casal, mas Pedro acabou sendo vencido pelo cansaço. Hoje ela se recorda desses episódios dando risadas, mas que na época eram bastante complicados. Recordações e mais recordações. Lembranças e mais lembranças. Praticamente nesses últimos dias sua vida se resume a isso. Pedro não foi seu único namorado e provavelmente não será o seu último, mas o que acontece é que o professor a completa como nenhum outro a completou. Nesses quase quarenta anos de existência ela se envolveu com quatro homens e com todos ele teve o prazer de terminar o relacionamento. Não existia amor de verdade. Pedro, além de ser um excelente amante, ele também é amigo, cúmplice e o que é melhor, leal, coisa rara hoje em dia no meio masculino. Por isso ele faz tanto falta e pra falar a verdade, Marli não sabe se conseguirá seguir sem ele.

 

*

 

“ Eu me lembro de muita coisa daquele dia. Me lembro de quando chegamos naquele motel e o quanto eu a desejava. Era estranho. O meu desejo por Sabrina extrapolava o tesão, a pele, o prazer. Eu queria mais do que penetra-la. Eu queria vê-la morrer. Minha mãe tinha razão, sou mesmo um doente mental. Não há diagnóstico melhor do que vivenciar a experiência de assistir alguém morrer. Pobre Sabrina. Achou que havia encontrado o príncipe encantado, chega ser engraçado. Afoga-la naquela banheira deu um certo trabalho, mas foi recompensador no final. Minha mãe tinha razão. Claro que antes eu a comi durante uma hora em cima daquela cama cafona. Realizei todos os seus pedidos mais quentes e depois a chamei para se banhar comigo. Pobre Sabrina. Tão linda, tão inocente, tão pura.”

- Me dê prazer em baixo d’água. – pedi.

- O que? Quer que eu faça submersa? – sorriu me tocando.

- Exatamente. – a essa altura eu já estava salivando.

- Tudo bem então.

“ Sabrina mergulhou. Assim que senti sua boca segurei em seus ombros e forcei seu corpo para baixo. Nossa. Ao bater os braços a menina jogou muita água para fora molhando o carpete. A coitada lutou muito contra a morte, mas não teve jeito. Só a soltei quando vi sua barriga ficar estufada de tanta água que bebeu. A morte por afogamento deve ser horrível. Deus me livre. Sai da banheira e notei que a minha ereção permanecia firme. Abandonei o quarto deixando para trás um corpo nu boiando. Assim que alcancei a rua senti vontade de comemorar meu primeiro homicídio com algumas doses de tequila. Foi o que fiz.”

Restam somente cento e cinquenta metros para a chegada a tal lanchonete onde Marli o aguarda. Nilton veste uma camisa azul social para fora, na tentativa de esconder sua pistola presa ao cos da calça jeans. Seus passos são firmes, moderados e silenciosos devido ao par de tênis que usa. O cara não passa despercebido de jeito nenhum. Os olhares femininos são pra ele, o centro das atenções. Finalmente ele pisa na loja e suas narinas sugam o cheiro do café fresco, do pão de queijo além de outros cheiros. Seu alerta interno foi acionado e ele não sabe porque. Seus olhos escuros como noite sem lua escanearam todo o lugar e nada captaram de estranho, são os mesmos clientes de sempre. Lins entrou e ocupou a mesa que fica de frente para a saída. Uma estratégia caso tenha que sair às pressas. Nilton não está a vontade, algo o incomoda bastante. Mais uma vez ele olha ao redor, olha para a entrada, olha para o balcão, para a pequena fila do caixa. Tudo normal.

- Bom dia. – disse a única garçonete do lugar.

Assustado, Lins mal cumprimenta a menina.

- Ah, oi!

- O mesmo de sempre? – a moça tem um sorriso exageradamente aberto.

- Sim, acho que sim.

- Tudo bem. Anotado.

Algo voltou a dizer dentro dele que ele não deveria estar ali, não deveria ter saído de casa. O coração do assassino do machado acelerou de repente. Péssimo sinal. Ele já sentiu isso uma vez e quase foi pego. Uma van de uma empresa de internet encostou e dois funcionários regularmente uniformizados desceram. Um deles pegou a escada que se encontrava fixada no teto do veículo e a posicionou no poste. Um deles olhou para dentro da lanchonete. Nilton colocou sua mão direita na arma.

- Mais que merda! – sussurrou.

Um susto seguido de outro e Nilton não está gostando nem um pouco disso. Até o barulho da escada sendo armada o fez saltar da cadeira. Seu pedido chegou e assim que bateu os olhos na bandeja ele percebeu que a fome já não existia mais.

- Me desculpe, é que prefiro que embrulhe para viagem, já estou de saída.

- Sem problema. – voltou com a bandeja ainda sorrindo.

Nilton tentou manter a calma respirando devagar porém às coisas pioraram quando uma dupla de rapazes passou na calçada e atravessaram a rua aproveitando o sinal fechado. Ambos ficaram parados, de costas olhando para a vitrine de uma loja de esportes que fica em frente. Hora de sair daquele lugar o mais rápido possível. A garçonete voltava com o pacote quando Lins cruzava a porta.

- Ei, senhor, o seu pedido.

Nesse momento Marli saia do corredor que dá acesso ao banheiro feminino. Os olhares se cruzaram. O bandido sentiu suas vísceras se contorcerem. Marli ao ver seu alvo ali a menos de vinte passos sentiu os membros superiores ficarem fracos e mesmo assim ela conseguiu sacar sua Glock e lhe dar voz de prisão.

- Nilton Lins, fique onde estar, você está preso.

Corre corre e gritaria às nove da manhã dentro de uma lanchonete. Lins disparou pela calçada tirando sua arma da cintura. Os dois rapazes deixaram a loja de esportes correndo do outro lado.

- Atenção, indivíduo em fuga e está armado. – anunciou um dos policiais do outro lado da rua também correndo pelo rádio.

Nessa hora ela agradeceu aos céus por ter escolhido um calçado leve e sem salto. Os transeuntes tentam entender o que está acontecendo, mas tudo o que conseguem ver é uma mulher negra, armada, correndo como louca atrás de um sujeito branco também armado. Não há muito o que fazer, Nilton não quer ir para a cadeia, por isso ele atira duas vezes. O tiro direcionado a dupla de agentes do outro lado explodiu o vidro da janela traseira de um Sandero preto parado em frente a um horte-frute. Os policiais deram graças a Deus por não haver ninguém no interior do veículo. O outro disparo passou longe de Marli, porém deixou alguém ferido lá trás.

- Mais que droga. – vociferou Porto. – não resista, Lins, será pior.

Em meio a toda aquela confusão, Nilton conseguiu ouvir o pedido da detetive. Não. Ele não está afim de atendê-la. Tudo que ele quer no momento é seguir fugindo. Nilton Lins é um cara esbelto, está bem fisicamente, mas, na boa, ficar correndo a pé não dará em nada, pensou. Nesses casos o melhor a fazer é atrasar a polícia. Uma mulher deixava o correios quando foi baleada quase que a queima roupa no braço. Ela se assustou e caiu sentada na calçada. O assassino do machado deu uma rápida olhada para trás e viu Marli prestando socorro a vítima.

- Boa garoto! – vibrou.

Marli sinalizou para que um dos policiais assumissem o seu lugar.

- Fique aqui. Chama o socorro. Vou atrás do Lins. – disparou a correr.

- Cuidado, senhora.

Muitas coisas passaram pela mente de Marli. Duas delas funcionam como um combustível. Pedro é uma delas. Ela o ama e lutará para reatar seu casamento. A outra é justamente o seu nome, sua carreira como agente da lei. Nessa missão Marli não pode falhar jamais. Seu inimigo outra vez olhou para ela antes de atravessar um cruzamento. O que esse merda pensa que é? Pensou. “ A minha vontade é de mirar e atirar, pelas costas mesmo. Dane-se. Eu não tenho o dia todo, ainda tenho um casamento para recuperar”. Enquanto Porto pensava, seu adversário passava pelo cruzamento, olhando para trás. Nilton foi surpreendido por uma motocicleta que avançou o sinal. O choque foi tão forte que seu corpo foi arremessado a mais ou menos setenta metros de distância. Marli viu tudo como se fosse em câmera lenta.

- Jesus Cristo! – exclamou boquiaberta.

Lins bateu no asfalto e ainda rolou só parando dois metros depois.

- Argh! Me ajudem, me levem para o hospital. – falou aos berros.

O lado direito do rosto está inteiro ralado. Seu antebraço esquerdo está com um fratura exposta. Estranhamente ele começou a tossir e a cada tosse, novas manchas de sangue aparecem no asfalto. Uma possível hemorragia interna. Ele levanta a cabeça e visualiza Marli chegando e decide seguir fugindo. As pessoas estão perplexas. Como ainda consegue caminhar?

- Nilton, pare, já chega. – gritou Marli.

“ O que essa negra pensa que é para me dar ordens?” Lins apertou o passo. O sangue escorre da fratura exposta de seu antebraço deixando para trás grossas gotas. Sua visão de repente se torna turva e outra onda de tosse acontece.

- PARE! – Marli apontou sua Glock.

A investigadora parece não acreditar no que está acontecendo bem diante dos seus olhos. Nilton Lins se encontra gravemente ferido, necessitando de auxílio médico com urgência e mesmo assim o seu instinto de sobrevivência consegue falar mais alto. Ele voltou a sacar sua arma e a apontou para a policial. É possível ouvir o som estridente das sirenas das viaturas e é bem provável que aja ambulância também. Armas apontadas. Olhares frios. Nilton sente dores terríveis por todo o corpo, ele mal consegue impor a arma. Nessa hora Marli recorre a fé, “ Solte a arma, por favor, meu Deus, eu não quero atirar”

Os curiosos vão se aglomerando. Carros passando a uma velocidade abaixo do permitido congestionando o trânsito. Viaturas freando abruptamente e Marli sem muita opção. Nilton tosse outra vez despejando uma quantidade considerável de sangue pela boca. Seu olhar para a policial já não carrega mais aquele ódio.

- Solte a arma, Lins, você precisa de ajuda.

Ele sorriu sem graça. Apertou o cano da pistola contra sua têmpora e atirou.

Acabou. Tudo acabou. O corpo do assassino do machado ao atingir o chão produziu um barulho surdo. Marli engoliu seco. A Glock voltou para o coldre. Um nó se formou em sua garganta, mas ela não chorou. Está tudo acabado.  Em questão de minutos seus parceiros de operação foram ao seu encontro lhe prestar congratulações, mas a única coisa que ela gostaria de verdade era abraçar seu marido. Cansada, suada, Marli deveria estar feliz, mas não está. Ela viu o inimigo número um da cidade sair de cena, bem na sua frente, mas, nem por isso ela consegue se alegrar. Salvou toda uma cidade, mas não o seu casamento. Droga de vida.

Dentro da viatura, seguindo para o departamento, sentada no banco do passageiro, ela segura firme seu celular olhando a paisagem que passa voando. De repente o aparelho vibra. Sem querer olhar ela olhou.  Era Pedro. FIM.


2 comentários:

  1. Muito bom! Só me quebrou no finalzinho rsrs Sem spoilers, sem spoilers Agora vai ter que fazer uma continuação!

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  2. Adorei a humanização da personagem principal. Gostei tb do final, principalmente da parte onde deixa o leitor imaginar o que acontece com a Marli em sua vida pessoal.

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