quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O Construtor de Sepulturas

 


O Construtor

De

Sepulturas

 

Eu nunca gostei de falar sobre a morte, particularmente prefiro que nem toquem no assunto quando estou por perto. Não que eu tenha medo de morrer. Não, claro que não. Do que adiantaria ter medo? Um dia, cedo ou tarde. Rico ou pobre. Negro ou branco. Todos nós iremos experimentar esse processo natural da vida. A morte.

Eu não gosto do assunto morte porque ele tirou de mim quem eu mais amei na vida. Meu pai era e é ainda o meu herói. José Antônio, esse era o nome da fera. Zé Antônio. Mesmo sabendo que passaria por dificuldades ele fez questão de ficar com os filhos depois do falecimento de minha mãe. Eu não tenho memórias de dona Severina, mas dizem que ela foi uma grande mulher. Meu pai assumiu os dois papéis e não só isso, assumiu com brilhantismo e de cabeça erguida. Seu Zé Antônio era o cara. Como sou o mais novo de quatro filhos, coube a mim ficar com meu velho depois que me casei e fui morar no interior. Meu casamento durou somente cinco anos e um dos motivos pelo qual o meu relacionamento foi por água a baixo foi a doença do meu pai. Verdade seja dita: minha relação com Sandra já não estava legal. Porém, dessa união conturbada nasceu Davi, meu tesouro. O homem da minha vida. Graças a Deus consegui tirá-lo das mãos de Sandra e agora ela que lute.

Coitado do velho Zé Antônio. Foi acometido pelo Alzheimer e desde então o meu herói não foi mais o mesmo. Davi cresceu em meio as confusões e esquecimentos do vovô e fazia questão de acompanha-lo em todas as consultas. Assim como eu amei meu pai até o último dia de sua vida, meu filho amou o avô e isso pra mim é mais que o mundo inteiro.

*

Seis meses antes da morte do meu pai eu fui notificado sobre o falecimento da mãe de uma amiga de trabalho. Como eu já falei, eu não gosto desse assunto e logo, não suporto cemitérios. Sei lá! O ambiente, o cheiro e o clima, são coisas que não me fazem bem. Fazer o que? Eu tinha que ir até lá prestar minhas condolências a minha jovem amiga. Precisei contratar de última hora uma cuidadora de idosos para ficar  não só com meu velho, mas também com o Davi. Gastei uma grana que eu não tinha.

O tempo estava fresco, ainda bem. Não sou chegado a calor. Às dezesseis e trinta coloquei meus pés naquele lugar hostil. Choros, tumultos, um cheiro insuportável de vela, gente circulando pra cima e pra baixo acompanhadas de seus agentes funerários. Que lugarzinho horrível. Ainda bem que quem morre não sabe que estar morto.

Entrei na capela número dois onde o corpo da mamãe da minha amiga era velado. A consternação era geral. Ao me ver ela veio ao meu encontro e me abraçou antes que eu pudesse abraçá-la.

- Obrigada por ter vindo, Samuel.

- Lamento muito por sua perda.

- Nós já esperávamos por isso, mas nunca estamos preparados na realidade.

- É verdade. – murmurei me lembrando do meu pai.

A mãe de minha amiga foi deixada na sepultura. Quando nós estávamos descendo da parte alta do cemitério, deparei-me com um dos funcionários do lugar terminando de reformar uma das sepulturas ali. Estranhamente ele parou o que estava fazendo e me olhou. Ele era idoso, baixinho, pele queimada de sol coberta por rugas profundas. Educadamente o cumprimentei.

- Olá! – eu disse.

- Tem fogo ai? – perguntou ele com sua voz cansada.

- Eu não fumo, senhor.

- Bom pra você. Veio deixar seu parente?

Olhei para o povo que já havia se distanciado bastante.

- Não! Foi a mãe de uma amiga minha. – veio meu pai em minha cabeça outra vez.

O velho fez o sinal da cruz. Eu olhei para a sepultura a qual ele reformava e vi que havia um nome na lápide.

- Valmir Peçanha. Conheceu?

O coroa olhou para a lápide e sorriu revelando dentes podres e amarelados.

- Valmir Peçanha sou eu. Essa sepultura é minha.

Na hora tive vontade de rir, mas me segurei.

- Pois é! Nunca se sabe o dia de amanhã. Há pessoas da família do senhor ai?

Seu Valmir me olhou estranho.

- Essa sepultura é minha. Só minha e de mais ninguém. Entendeu?

Anui.

- E digo mais; quem por um acaso for sepultado aqui, o céu ou o inferno irá devolvê-lo a vida.

Ah legal! Tinha que ser eu a dar atenção a um velho maluco.

- Está bem, seu Valmir Peçanha. Eu já vou indo. Boa tarde.

- Na última morada de Valmir Peçanha ninguém, absolutamente ninguém descansa.

Deixei o idoso louco falando sozinho e desci.

*

A vida seguiu seu rumo. Continuei na labuta com meu pai e ainda tendo que dar conta de Davi que a cada dia ficava ainda mais esperto. Certo dia eu lavava a louça do jantar quando ele olhou para o avô sentado na cadeira de rodas no canto da sala assistindo a TV e disse.

- Pai, o que acontece dentro da cabeça do vovô?

Quase deixei o prato cair.

- É filho! Só Deus e ele sabe. Deve ser horrível.

- Eu li no Google que, pessoas com essa doença morrem numa situação...

- Filhão! Veja bem. Quando esse dia chegar, você e eu faremos de tudo para que o vovô tenha uma partida digna. Combinado?

- Combinado!

Depois dessa conversa eu corri até a varanda, fechei a porta e chorei.

O tempo foi passando. A saúde de seu Zé Antônio só piorava. Chegou ao ponto que ele não conseguia mais ficar na cadeira de rodas. Meu querido papai terminou seus dias em cima de uma cama. Davi e eu nos esmerávamos em deixá-lo bem confortável. Meu filho adorava ajudá-lo a se alimentar.

- Olha o aviãozinho, vovô.

Certa madrugada, depois de oitenta e três anos, sete deles doente, seu Zé Antônio fechou os olhos para sempre. Foi como eu havia dito a Davi. Sua partida desse mundo fora digna de sua brilhante vida. Um herói.

*

Seis meses depois lá estava eu outra vez naquele lugar horroroso. Os mesmos choros. O mesmo cheiro e o clima; pior impossível. Meus irmãos choravam sem parar e é lógico, não tinham cabeça para resolver nada, então... sobrou pra mim outra vez.

Tudo resolvido. Eu queria sair logo daquele lugar. O cortejo com o corpo de seu Zé Antônio subiu até a parte alta do cemitério. Os funcionários pararam o carrinho com o caixão perto de uma sepultura que eu conhecia bem. Olhei para a lápide e já não havia mais o nome Valmir Peçanha. O glorioso nome do meu velho ocupara o lugar. Enquanto o sacerdote da igreja do meu irmão mais velho recitava o Salmo 91 olhei ao redor e identifiquei seu Valmir na outra parte onde os corpos são enterrados em covas segurando sua inchada. Em meio as cruzes fincadas no chão ele me olhava daquele jeito estranho que me causava arrepios.

Meu pai foi deixado para apodrecer dentro daquela sepultura escura, abafada e úmida. Nós estávamos descendo quando Valmir me segurou pelo braço com sua mão morna e suja de barro. Meu coração disparou e eu precisei tirar meus óculos de sol e me recompor.

- O senhor me assustou, sabia?

- Vai mesmo deixar seu familiar lá?

- Acho que sim. Eu paguei e paguei caro.

- Ah tá! E quem está lá?

Minha paciência começava a dar sinais de que estava chegando ao seu final.

- Meu pai! Mais alguma coisa?

Valmir Peçanha sorriu e depois fechou abruptamente sua expressão.

- Lembre-se, rapaz. O céu ou o inferno irão devolvê-lo a vida.

Velho maluco! Mais uma vez o deixei falando sozinho.

*

Eu não gosto de falar sobre morte. Odeio cemitérios. Exumação então nem se fala. Três anos. Aqui estou eu outra vez. Meus irmãos já não choram mais, apenas conversam entre eles compartilhando às boas lembranças do nosso pai. Davi, um pouco mais crescido quis vir comigo. Eu não sou do time que leva crianças para o cemitério, mas... penso eu que desde já ele precisa conhecer a realidade da vida.

- Não precisa ver se não quiser. – falei ao som das marretadas do coveiro na lateral da tampa da sepultura.

- Tranquilo, pai.

A tampa de concreto foi removida. Lá estava o caixão. O coveiro e seu auxiliar removeram também a urna. O jovem trabalhador fez uma observação.

- Os parafusos, principalmente os da parte da cabeça estão mais apertados.

Eles continuaram com o serviço. Meus olhos estavam fixos ali enquanto meus manos falavam sem parar sobre o passado. A tampa do caixão foi arrancada praticamente. E outra vez, ao ver o esqueleto de meu pai, o mesmo ajudante comentou com o seu colega.

- Cara! – coçou a cabeça. – me parece que ele puxou o véu e também o forro do caixão. Veja só às  mãos.

Meus irmãos pararam de falar e começaram a chorar quando os restos mortais do velho Zé Antônio começaram a ser retirados do caixão direto para um saco plástico verde.

FIM.


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