O Sol além da Chuva
Capítulo 4
O apartamento de Magno Leite ainda não possui móveis e poucos são os eletrodomésticos adquiridos desde quando se separou. Na sala há somente uma poltrona bege reclinável, um aparelho de TV gigante com vídeo game instalado. Uma típica casa de homem solteiro, pensou Naiara olhando para aquele emaranhado de cabos logo abaixo da TV. Na cozinha há um Cooktop de indução recém comprado, coisa que deixou a jovem apaixonada. Ela sempre quis ter um igual aquele. A geladeira também é algo de outro mundo.
— O que você quer beber, água, suco, refrigerante ou cerveja? — Magno estava logo atrás dela.
— É um pouco cedo para cerveja. Vamos de suco mesmo.
Eles voltaram para sala cada um segurando seu copo de suco de abacaxi com hortelã. Como bom cavalheiro que é, o advogado cedeu sua poltrona para sua convidada e, mesmo vestido socialmente, Magno sentou-se no chão em posição de um mestre chinês. Eles conversaram bastante. Naiara lhe falou sobre seu sonho de conhecer a Europa. De se tornar uma empresária no ramo de beleza entre outras coisas. E faltou também do drama que é cuidar dos pais idosos.
— E quem está com eles agora?
— Então. Para eu estar aqui existe um longo processo antes. Eu deixo tudo programado para a cuidadora.
— Entendi.
O suco estava muito bom, por isso ela terminou de beber primeiro.
— O que houve entre vocês? Digo. Você e a Hortência?
Essa pergunta viria mais cedo ou mais tarde, por isso Magno não foi pego de surpresa.
— Na verdade, Naiara, nós já nos casamos dando errado. Acredita que, na noite de núpcias, ela não quis nada comigo.
Naiara arqueou as sobrancelhas.
— Não adianta. Algo que começa errado, as chances de terminar em tragédia são altas demais.
— Tragédia?
— Sim, tragédia. No nosso caso, as tragédias foram gradativas. Um fato aqui, outro ali e deu no que deu.
— Você chegou a agredi-la?
Demonstrando um bom preparo físico, Magno levantou-se sem ao menos por às mãos no chão.
— Houve momentos em que eu quase perdi a cabeça, mas não cheguei a encostar nela. — pegou o copo vazio da convidada. — Vamos pedir algo ou quer que eu prepare?
— Não me diga que o grande Magno Leite possui dotes culinários?
— Duvida?
*
Milena estava de volta ao lar. Após uma longa noite ao lado de Jota e companhia, a filha única do casal Magno e Hortência se encontra deitada confortavelmente em sua cama tentando recuperar o sono perdido. Estar com a galera é legal, mas há momentos em que nada substitui o cantinho nosso de cada dia. Ela precisava de um banho urgente, porém o sono e o cansaço não permitiram que a adolescente se movesse em direção ao banheiro logo ali do lado.
— Como passou a noite, dona Milena Leite Passos?
“Ah, não. Isso só pode ser um pesadelo” pensou abrindo os olhos dando de cara com sua mãe parada em pé na porta com as mãos na cintura.
— Bom dia para a senhora também.
— Quem é esse tal de Jota?
— Um amigo. Eu já falei. — puxou o edredom.
— Eu não estou acreditando. Você vai dormir sem tomar um banho pelo menos? Milena, você está fedendo a suor e… — se aproximou cheirando a roupa da filha. — Meu Deus. Você usou droga?
— Claro que não, né mãe. — tentou cobrir a cabeça.
— Então foi esse tal de Jota. Ele é maconheiro?
— É um maconheiro super legal se quer saber. Posso dormir agora?
— Vou contar para o seu pai. Ele não vai gostar nenhum pouco em saber que a filha dele está namorando um drogado.
— Tá, mãe. Faça o que bem entender, só me deixe dormir em paz, por favor.
A perda do controle dos filhos tem gerado uma deformidade na construção do ser humano. Hortência ficou ali parada observando sua filha mergulhar em sono profundo enquanto meditava no quanto sua separação a afetou. Quantas crianças mais precisam sofrer por escolhas equivocadas de seus pais? Quantos adolescentes precisam se drogar para esquecer uma realidade infernal dentro de casa? Como serão os adultos de amanhã psicologicamente falando? Esse quadro precisa ser revertido.
*
Durante toda a explicação de como se preparar um belo molho de tomate e todo o seu processo, Gilson notou o quão distante estava sua colega de classe apenas observando o seu comportamento. Normalmente Hortência faz anotações e mal tira os olhos do professor. Hoje, por vezes ele a pegou olhando para o nada suspirando pesadamente.
— Ei! Tudo bem? — sussurrou.
— Conversamos depois.
Na hora do intervalo eles não foram para o pátio como sempre fazem. Hortência preferiu permanecer dentro da sala e ainda pediu que Gilson a fizesse companhia.
— Minha filha está perdida.
— É mesmo?
— O divórcio não fez bem a ela. Eu resolvi um lado e não me preocupei com o outro, essa foi a falha. Milena não me vê mais como mãe. Ela pegou um ranço horrível de mim.
— Olha, eu não tenho filhos, mas tenho sobrinhos. Minha irmã se divorciou e minha sobrinha começou a dar trabalho. Sabendo a causa da rebeldia e revolta, minha irmã foi aos poucos retomando o controle da situação. Demorou, mas ela conseguiu.
— É verdade. Isso leva tempo.
— Sim! Fique atenta aos pequenos detalhes. A solução está no micro e não no macro.
Hortência sorriu olhando para ele.
— Tem certeza de que quer ser chef de cozinha? Não prefere ser psicólogo?
— Ah, não. O mundo perderia um baita cozinheiro.
— Convencido. — apertou sua bochecha.
*
Fátima e Francisco Oliveira almoçam juntos desde quando se casaram há quase seis décadas. Mesmo fracos e debilitados, eles fazem questão de estarem juntos pelo menos nas refeições e Naiara respeita muito isso. Ela também acompanha os pais e aproveita para ouvi-los. Seu Francisco é o que mais fala. A história de quando ele, na companhia de mais dois amigos durante uma pescaria conseguiram sobreviver ao naufrágio já foi contada pelo menos umas duzentas vezes, mas elas não se cansam de dar boas gargalhadas.
— Pai, o senhor tinha que ser comediante.
O celular tocou em cima da mesa.
— Com licença. — atendeu ali mesmo. — É minha maninha.
— E aí, tribufú, como vão as coisas?
— Estamos almoçando e o velho Francisco contando suas aventuras.
— Ele já contou da pescaria?
— Já. Ontem e hoje.
— Eles estão precisando de alguma coisa urgente, feiosa?
— Olha, comprei frutas, verduras e parte dos remédios, o dinheiro deles é pouco e…
— Pois é, eu acabei me esquecendo de mandar uma ajuda. Me passa seu Pix. Farei isso agora.
Naiara sorriu para a mãe que mastigava lentamente a salada.
— Maninha, se puder fazer isso assim que terminarmos a conversa eu agradeço, preciso comprar o remédio da pressão do pai.
— Certo! Manda um beijo para eles. Estou com saudades de vocês.
— Nós também. — falou Fátima limpando a boca.
Escrava do dinheiro. Quando se faz tudo sem ao menos parar para refletir no que se está fazendo e ainda mais quando a motivação é o financeiro, o ser humano se torna servo daquilo que deveria dominar. É a pessoa quem determina o que se deve e o que não se deve fazer. No fundo Naiara sabe que está lesando seus pais e que um dia essa conta vai chegar, mas enquanto esse fatídico dia não chega, ela segue desfrutando de tudo o que o dinheiro pode comprar.
*
O apartamento de Jota está às moscas. Literalmente falando. Há restos de lanches espalhados pelo sofá e também na mesinha de centro. Na pia da cozinha os resíduos de comida de quase quinze dias produzem um forte odor estonteante as narinas mais sensíveis e até mesmo as não tão sensíveis assim. No banheiro, mesmo com o cesto onde são jogados os papéis higiênicos usados transbordando e uma descarga acoplada que mal funciona, um casal de amigos transa no box sob a água quente do chuveiro. No quarto, Milena e Jota trocam suculentos beijos esparramados na cama de casal.
— Vou ao banheiro. — Se ergueu Milena.
— Segura mais um pouco. Tem um pessoal lá. — pegou um isqueiro e um cigarro de maconha embaixo do travesseiro.
— Caramba! Eles já estão lá há uma hora.
— O Carlito tomou o “azulzinho” , imagina como está a situação? — riu.
— Meu Deus! Coitada da Bella.
Após sorver uma boa quantidade de fumaça, Jota passou o cigarro para sua namorada. Hesitante Milena o segurou.
— Vai, dá um trago.
— Isso tem cheiro de bosta de vaca.
— Pode até ter, mas o efeito é o paraíso. Dá um trago sem compromisso.
Trêmula. Insegura. Com medo. Milena pôs o cigarro na boca e de maneira desastrosa ela sorveu a fumaça que a princípio a deixou tonta, mas que ao final todo o seu mundo se transformou em um reino pacificado. Ela estava super leve.
— Como disse um certo “tarça” meu algum tempo atrás “mas que onda é essa maluco?” — declarou Milena procurando mais embaixo do travesseiro.
— Opa, opa! Vamos devagar mocinha. Tem mais no armário mas só vou ter dar se você me dar.
A filha de Hortência deitou-se de forma convidativa ao sexo.
— Tá esperando o quê?
*
Tudo que acontece de forma rápida é natural que haja um estranhamento. Ainda mais no que se refere a sentimentos. Gilson é um cara que trabalha duro. O pouco que possui foi conquistado à base de muito sacrifício e abdicação e na parte sentimental não foi diferente. Como um bom hétero, a admiração pelo sexo oposto é realmente o seu lado mais fraco. Quando mais jovem ele sofreu de complexo de inferioridade. Namorar uma garota do estilo “patricinha” era algo fora de cogitação. As meninas que na época atendiam ao “padrão de beleza” se encontravam fora do seu catálogo, não porque ele queria, mas porque era algo muito distante da sua realidade.
Agora ele se encontra sentado e muito bem acomodado no sofá da sala da casa de sua colega de curso, que lembra e muito as meninas que o ignorava no passado.
— Você tem uma bela casa.
Hortência voltou da cozinha segurando dois copos duplos de suco de caju bem geladinhos. Seu finado pai o educou de forma a sempre evitar olhares e comentários a respeito do corpo feminino. Para ele, homens que se comportam desse jeito não passam de moleques que só alcançaram a idade adulta. Mesmo o pai já tendo partido há algum tempo, Gilson ainda carrega dentro de si esses valiosos ensinamentos mesmo estando ele diante de uma beldade.
— Eu também gosto. Aliás, foi a única coisa a qual Magno permitiu que eu opinasse. — ocupou o outro canto do sofá.
— Sério? O cara era tão autoritário assim?
— Autoritário, babaca, otário, machista e o que mais…
Havia um certo pesar, uma mágoa, rancor na fala de Hortência, por isso Gilson deixou com que ela extravasasse.
— Às pessoas me perguntam se eu estou triste com a separação.
— E está?
— Acredita em livramento?
Gilson assentiu.
— O divórcio não é algo bom pra ninguém. Mas viver ao lado de uma pessoa que só pensa em si mesma e que pisa em todos ao seu redor, também não é legal. Ou eu estou errada?
— Concordo. — experimentou do suco.
— E você, nunca se casou?
— Quase. Eu acredito em livramento. — riu. — Falando sério agora. Eu não tive muitos relacionamentos e os poucos que me envolvi não foram sólidos o suficiente para embarcar em algo tão importante como um casamento.
— Hum! Então você é o típico homem de família?
— Tive esse exemplo dentro de casa. Meu pai foi um homem bem rigoroso nesse ponto. Ele era protetor e provedor, qualquer problema que surgia ele matava no peito e resolvia. O Vi fazendo isso várias vezes.
— Pretende seguir o exemplo do seu pai quando tiver uma família?
— Pode soar pretensão, mas serei melhor do que ele foi.
O mundo mudou e com isso, certos hábitos que outrora faziam com que a sociedade fosse um pouco mais regrada, infelizmente ficou pelo meio do caminho. Os papéis foram invertidos. Ganha quem grita ou fala mais alto. O homem que deveria proteger sua família é o primeiro a se desvencilhar ou arrumar uma desculpa pelo seu fracasso. Caras como Gilson tornaram-se peças expostas em museus.
— Admirável. — Hortência estava anestesiada. — Vamos cozinhar?
— Não vejo a hora.
*
Assim que embarcou no carro de Magno, a noite de Naiara Oliveira já dava indícios de que seria estupenda e que terminaria melhor do que havia começado. Para começar eles assistiram a um belo filme numa das melhores salas de cinema localizada no maior shopping da cidade. Levaram com eles guloseimas e refrigerantes. Foram três horas de projeção de uma trama policial onde o advogado não assistiu nem trinta por cento dela, isso porque — e com toda razão — as coxas roliças de sua companhia se tornaram mais interessantes.
Em seguida dispararam para um restaurante especializado em comida francesa. Lá ela pode experimentar o melhor que a alta gastronomia parisiense pode oferecer.
— O que achou do Ratatouille? — Perguntou girando a chave na ignição.
— Nossa, amei.
— Se quiser podemos repetir a dose.
— Legal.
Já no portão de casa, Naiara se despedia de Magno depois de uma noite bastante movimentada e cheia de coisas que fizeram bem a alma de ambos.
— Ah, sim. Eu já estava me esquecendo. — Magno sacou do bolso da camisa um pequeno papel de presente dourado. — comprei para você, espere que goste.
Sem reação, Naiara abriu o presente. Após ver o conteúdo ela ficou ainda mais impactada. Um belo cordão de ouro com um pingente da inicial do seu nome.
— Eu não sei o que dizer.
— E nem precisa. Eu só tenho a agradecer a você pelo que tem feito por mim. Essa nova fase da minha vida não tem sido nada fácil então…
— Mas…
— Vamos ver como fica em você?
O cordão só potencializou o que já era bom. Não importa o que ela faça de diferente com o cabelo ou se vista com determinado tipo de roupa. Em Naiara nada, absolutamente nada fica feio.
— Foi o que imaginei. Ficou perfeito.
— Aí! Magno, não sei se posso aceitar isso.
— Então aceite isso.
Ele a segurou pela cabeça delicadamente e a beijou. Não houve resistência. Tudo aconteceu rápido demais, foi difícil processar. Não foi um beijo curto. Ele levou um certo tempo. Tempo o suficiente para Naiara se esquecer de que se encontra trocando fluidos com o ex de sua melhor amiga.
*
O dia mal havia acabado de dar as caras e Hortência tinha sua mente atacada por zilhões de coisas ao mesmo tempo e uma delas é a organização do quarto de Milena. Pelo que ela se lembra, a última vez em que sua filha se apossou de uma vassoura e flanela foi há exatas três semanas e isso após dias de insistência.
Enquanto Milena escova os dentes Hortência invadiu seu quarto e a sensação que teve foi que um tsunami havia passado por ali.
— Caramba! Como você consegue dormir nesse chiqueiro?
Milena deu de ombros ainda escovando os dentes.
— Sorte sua que eu estou de bom humor hoje, se não…
— Quem era aquele bolo fofo com pinta de rapper americano? — cuspiu antes de perguntar.
— Bolo fofo com pinta de rapper? Por um acaso você está falando do meu colega de curso? — andou até o banheiro.
— Eu não sei se ele é seu colega de curso. Só sei que era um negão bem…
— O nome dele é Gilson e a senhora tenha mais respeito por favor. — voltou para o quarto já tirando os travesseiros da cama. — Mas, o que é isso?
Milena apareceu na porta do banheiro. Em choque Hortência segurava um cigarro de maconha.
— O que significa isso, Milena?
— Maconha, não está vendo?
Hortência olhou para a filha e depois para a droga.
— Filha! Pelo amor de Deus. Você está usando isto?
— Tem pouco tempo…
— E você fala assim, como se não fosse nada? — Hortência começou a chorar.
— Como assim, mãe? Vai adiantar eu negar?
Engolindo o nó formado na garganta Hortência sentou-se na cama respirando profundamente.
— Foi ele não é, o Jota?
— Sim! Pode me devolver? — estendeu a mão.
— Claro que não. Servirá de prova para o seu pai.
— Mãe…
— Milena, vamos fazer o seguinte. Dê o fora daqui. Está satisfeita agora que destruiu o meu dia? Vá para escola. Mais tarde teremos uma conversa junto com seu pai.
— Mãe…
Hortência acumulou o máximo de ar em seus pulmões e se utilizou dos decibéis para deixar bem clara a sua irritação para Milena.
— FORA DAQUI SUA MACONHEIRA DE MERDA!
O negócio está ficando bom, hein? Dramas familiares, amiga fura olho… estou adorando
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