O Sol além da Chuva
Capítulo 3
Fátima e Francisco tiram o tradicional cochilinho da tarde logo após o almoço acomodados no quarto do casal. Juntos tiveram duas filhas: Lara, que hoje mora fora da cidade com o marido que é médico veterinário, e dois filhos saindo da adolescência e Naiara que ficou com a cansativa responsabilidade de cuidar dos velhos. No início, quando seu Francisco teve sérios problemas com a artrite e dona Fátima com sua visão, Naiara até questionou o fato de ter que abrir mão de uma série de coisas relacionadas a sua idade como: sair com os amigos, namorar, estudar entre outras coisas. Não teve jeito. A jovem morena preferiu seguir morando e cuidando dos coroas do que vê-los jogados num asilo.
De maneira silenciosa, Naiara abriu a porta do quarto e os viu deitados lado a lado na cama, só faltava estar de mãos dadas. A amiga de Hortência sorriu maliciosamente se afastando indo em direção a cozinha. Na mão direita o celular com o aplicativo do banco aberto.
— Vamos lá. — disse consultando o saldo.
Para sua alegria a aposentadoria de seu Francisco havia sido depositada.
— Yes!
Ela também conferiu no aplicativo do banco de sua mãe se o saldo estava positivo.
— Beleza!
Pacientemente Naiara realizou as transações jogando uma parte dos benefícios em sua conta privada. Isso é feito sempre, livre de fiscalização ou questionamento por parte dos pais ou familiares.
— Pronto. Meu final de semana no shopping com as meninas está garantido.
*
O cheiro de maconha se misturou ao do sushi pedido por Jota fazendo o estômago de Milena se retorcer até ela não resistir e correr para o banheiro. No pequeno apartamento de um prédio de cinco andares que fica num conjunto habitacional localizado no periferia da cidade, Jota, o proprietário, recebe diariamente amigos para uma sessão de cinema regada a drogas, bebidas e sexo. Milena o conheceu por um acaso na saída da escola e desde então eles vêm se encontrando ali juntamente com outros insatisfeitos com a vida que levam com seus pais.
— Caramba, Jota. Seu banheiro está pior do que a sala. — Falou Milena.
— E qual cheiro você esperava sentir lá dentro? É um banheiro, gata.
— Custa lavá-lo? — sentou-se no sofá ao lado dele.
— Claro que custa. Custa tempo e dinheiro e nenhum dos dois eu tenho.
— Ah, tá. E essa maconha e o sushi, foram de graça?
— Meu Deus, gata, você está muito estressadinha. Vem, vamos lá pra dentro transar um pouco, vamos.
Milena cruzou os braços.
— Nós já fizemos isso hoje, Jota.
— Já? — coçou a cabeça por cima da touca do Fluminense.
— Sim e mais de uma vez. — pegou seus pertences em cima da mesa de centro. — essa porcaria está derretendo seu cérebro.
— Você vai embora? Pensei que fosse ficar. Vamos pedir pizza. — a abraçou.
— Quem sabe outro dia. Tenho trabalho da escola para fazer e minha mãe está me enchendo o saco. Eu te ligo mais tarde.
*
Quando se está apaixonado o céu muda de cor. Se dorme sorrindo e quase sempre o apetite é reduzido. No caso de Gilson o apetite não foi afetado. Pelo contrário, sua fome por fastfood redobrou. Hortência Passos é somente uma colega de curso, uma paixão platônica, mas já foi capaz de mexer com seu estilo de vida. Ele deixou de lado as roupas mais simples dando lugar às mais vistosas. Até mesmo o desodorante barato foi descartado, sobrando espaço para um perfume de boa marca.
A aula sobre empratamento estava super interessante, mas Hortência tinha sua prioridade em seus pensamentos. E exatamente hoje ela resolveu vir absurdamente linda dentro de um vestido azul claro na altura dos joelhos. Estava difícil se concentrar.
Na esquina da rua das Flores, na volta do curso, Gilson não conseguiu mais segurar os impulsos do coração. Antes de Hortência desembarcar, ele a convidou para sair.
— Eu não sabia que gostava de literatura. — tirou a mão da porta do carro.
— Tenho verdadeira fixação por livros.
— Quando eu era mais nova eu lia muito, tipo: Stephen King, Agatha Christie, sem falar dos nacionais, Machado de Assis, André Vianco, Ariano Suassuna…
— Poxa, Machado de Assis? Que legal. Então, vamos a esse lançamento? Depois a gente pode comer alguma coisa.
— Claro! Vai ser bom. Estou precisando mesmo fazer programas diferentes. Sábado às?
— Às 18h eu te pego aqui. Certinho?
— Certinho. — Desceu.
Pois é. O “não” Gilson já tinha. Cabe a ele agora administrar o “sim” que recebeu da melhor forma possível. Dali a dois dias o resultado virá e aí então ele saberá se fez um bom trabalho ou não.
*
Por que esperar o final de semana quando se tem uma boa soma em dinheiro na conta? Por que se privar de se divertir em pleno meio da semana mesmo que sozinha num dos shoppings mais badalados da região? Naiara não se produziu o bastante, sua intenção indo até aquele lugar não era arrumar um namorado, mas sim poder olhar para as vitrines e comprar sem precisar contar moedas para isso. Por falar em beleza, Naiara possui de sobra. Qual homem não se encantaria por uma morena de jeans, sandálias de salto e blusa baby look da Mulher Maravilha circulando sozinha pelos corredores de um shopping famoso?
Naiara é fã de bolsas. Tem verdadeira paixão por elas. Sem pensar muito ela invadiu uma das lojas já sendo recepcionada pela vendedora de sorriso simpático.
— Vou querer aquela.
— Sim, senhora. Vou buscá-la.
Enquanto aguarda a volta da funcionária da loja, Naiara se pôs a se admirar num dos espelhos de corpo inteiro disponíveis no estabelecimento.
— Está perdida por aqui?
— Ah! Oi, Magno. Não e nem você pelo visto.
— Pois é. Vim resolver uma questão de prestação de serviço de uma loja. Defesa do consumidor.
— Ah, sei, tipo Celso Russomanno e o Ben Mendes?
— Sim! Não é minha especialidade, mas…
— Que bom que está aqui. Acabei de escolher uma bolsa e se algo estiver errado eu já tenho um advogado. — Eles riram.
Minutos depois da saída da loja, Naiara se encontrava feliz por sua nova aquisição e muito sem graça por estar sentada comendo frutos do mar num restaurante chique na companhia do ex de sua amiga. Na época em era casado com Hortência Magno sempre a tratou bem, ela o via como um sujeito agradável e simpático, diferente daquilo que sua amiga o pintava.
— Quer carona para casa?
— É contra a mão. Eu chamo um Uber.
— Imagina. Faço questão.
Eles ainda degustaram uma saborosa sobremesa a qual Naiara pôde sentir o que só os ricos sentem. Poder comer bem é um privilégio de poucos. Esse sentimento se intensificou ainda mais quando ela embarcou no novo veículo de Magno. A única coisa que lhe veio à cabeça ao olhar para o painel e os bancos acolchoados foi: “Hortência, você dispensou mesmo esse homem?”
— E aí, o que achou da comida do restaurante? — perguntou ao parar na calçada da casa de Naiara.
— Nunca provei nada igual. Obrigada.
— Podemos repetir a dose no final de semana.
A morena engoliu seco.
— Lá mesmo, perto do shopping tem um restaurante italiano que é divino. Você vai amar.
— Legal. Eu topo.
Magno sacou do bolso do blazer um cartão com seu contato.
— Salva meu número e vamos nos falando até sábado.
— Pode deixar.
*
A livraria estava lotada e havia também uma extensa fila para se estar ao lado da famosa autora de auto ajuda para uma dedicatória e foto. Entre esses fãs de literatura estão Gilson e Hortência segurando firmemente cada um o seu exemplar. Dava para ver o brilho nos olhos do motorista cada vez que a fila andava. Hortência estava feliz por ele.
— Parece uma criança na Disney. — Declarou ela.
— Eu não estou acreditando. Eu curto muito os livros dela.
Minutos depois a dupla de amigos deixava a livraria com seus devidos livros autografados e dedicados seguindo direto para a praça de alimentação. Tanto ela como ele estavam mortos de fome.
— Vai de hambúrguer e fritas ou comida de verdade? — Gilson era pura empolgação.
— Fica a seu critério.
— Na dúvida os dois.
Hortência teve que rir.
Que baita noite de Sábado. Diversão, comida à vontade e muita troca de confidências. Durante as duas horas que passaram ali sentados um diante do outro, coisas foram postas para fora. Muitas coisas sérias e outras nem tanto. Tristes, surpreendentes, vexatórias e alegres. Gilson conseguiu em uma noite o que os calmantes não conseguiram em meses na vida da vendedora.
Perto da meia-noite Hortência desembarcou em frente a sua casa ao invés da costumeira esquina. Ela estava sóbria e só agora ela se deu conta disso.
— Obrigada por tudo, meu querido.
— Eu que agradeço. Foi muito prazeroso.
— Eu lhe convidaria para entrar e esticar um pouco mais a noite, mas tenho compromisso logo cedo.
— Ah, relaxa.
Quando criança, por ser desprovido de beleza e sempre estar acima do peso, Gilson sofria as mais cruéis das humilhações dentro de uma instituição de ensino. Ele lembra como se fosse hoje quando foi chamado de homem grávido pela turma em peso. A encarnação só parou pela intervenção da professora que os ameaçou dizendo que os reprovaria. Na hora foi ruim. Péssimo. Horrível, mas hoje ele consegue dar boas gargalhadas desse fato. Negro, gordo e não muito bonito. Nada disso o impediu de namorar. Foram poucas, mas houve sim moças que se interessaram por ele e se não fosse por questão de distância ou morte, com certeza elas teriam um futuro ao lado dele.
*
Hortência tomava seu demorado banho quente relembrando tudo o que vivera há algumas horas atrás. Quando que ela iria imaginar que, um dia ela estaria de pé dentro de uma livraria lotada, numa fila para conseguir um autógrafo de uma autora que ela sequer ouviu falar um dia? Nunca. Somente um sujeito feito Gilson Santos para fazer com que uma mulher como Hortência Passos fizesse tal coisa e ainda por cima gostar do que fez. “Isto realmente estava escrito em meu destino?” Perguntou a si mesma.
Já em seu quarto, escolhendo a roupa de dormir, sua cabeça voltou a focar no motorista de aplicativo, em tudo o que ele a proporcionou nessa noite e com isso veio também a irresistível vontade de ligar e lhe pedir que volte para mais uma rodada de bate papo. O celular estava em suas mãos quando o mesmo tocou.
— Me ligando do quarto, Milena?
— Não, eu não estou em casa.
Hortência acreditava cegamente que sua filha se encontrava trancada no quarto já no quinto sono.
— Milena, são quase uma da manhã, aonde você está, garota?
— Mais que droga mãe, para de gritar. Eu estou no apartamento de um amigo meu.
— Que merda de amigo é esse?
— Amanhã quando eu chegar a gente conversa sobre ele.
— Quem mais está aí?
— Tem uma galera aqui. Vamos comer pizza e assistir série.
A cabeça de Hortência começou a latejar. Milena estava mentindo pra ela.
— Meu Deus! Só me passa o endereço desse prédio caso aconteça alguma coisa.
— Relaxa, Hortência Passos. Não vai acontecer nada. Boa noite.
Do céu ao inferno em questão de minutos. O que mais ela pode esperar da vida?
Hortência não tem um dia de paz, coitada! Espero que Gilson não a decepcione, assim como a amiga está prestes a fazer, furando seu olho…
ResponderExcluirPassando aqui pra deixar o meu comentário. Estou adorando acompanhar a série.
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