domingo, 7 de julho de 2024

O Sol Além Da Chuva | Capítulo 2

 


O Sol além da Chuva 


 Foi difícil chegar ao destino. Justamente no primeiro dia de curso o trânsito resolveu fazer da vida de quem depende do transporte público uma verdadeira batalha. Hortência acreditou piamente que não conseguiria chegar a tempo de pegar pelo menos uma das parte  que ela julga ser uma das mais importante que é justamente a de apresentação dos novos aspirantes a chef de cozinha. Graças a boa habilidade e a vontade de trabalhar do guarda de trânsito o seu atraso não lhe custou dano algum.

 Hortência estava nervosa e um pouco tímida também, por isso ela ocupou um dos últimos lugares no fundo da sala tentando ao máximo controlar sua ansiedade. Assim que o professor deu as boas vindas aos presentes, a ex vendedora lembrou-se de um velho conselho dado por sua avó materna de que tudo deveria ser entregue nas poderosas mãos de Deus e foi o que ela fez. Enquanto o restante da turma não conseguia manter a língua parada dentro da boca, Hortência fez uma ligeira oração de entrega.

 — Amém! — disse baixinho ao final da prece.

 Após as apresentações o professor iniciou sua palestra conseguindo atenção de todos com sua boa dicção e retórica. A aula fluía muito bem quando Gilson Santos abriu a porta sem ao menos bater causando irritação no mestre.

 — Me perdoe, professor.

 — Lição número dois pessoal, nunca entre na cozinha sem a permissão do chef. Você deve ser o Gilson? — observou na lista de chamada.

 — Sim!

 Gilson não é um homem tão alto, mas está acima do peso. Seus joelhos vem pagando seriamente por isso. Negro, ele tem salvado o pão de cada dia dirigindo para cima e para baixo como motorista de aplicativo. A gastronomia é um sonho que já foi adiado diversas vezes e finalmente hoje ele está pisando em sala de aula.

 — Com licença, posso me sentar aqui?

 — A vontade. — Disse Hortência.

 Não que Gilson não tenha conseguido prestar atenção na aula, mas ter ao lado uma mulher como Hortência realmente alguns importantes segundos da matéria foram perdidos. Não são todos os dias em que se tem a oportunidade de sentar-se ao lado de uma princesa branca de cabelos negros e corpo esbelto.

 — Muito bem pessoal, vamos dar uma pausa para o xixi e já voltamos. — Alarmou o mestre.


*


 Ao meio-dia Hortência deixava o prédio onde funciona o curso com a cabeça no que preparar de almoço para Milena ao chegar em casa. Vida de dona de casa não é para qualquer uma. Mesmo já tendo previamente deixado algo pronto na noite anterior, Hortência ligou para a filha que a atendeu com seu típico jeito ríspido de ser.

 — Tem comida na geladeira é só esquentar.

 — Eu vi e já estou fazendo isso.

 — Ótimo! Eu estou saindo daqui. Comporte-se.

 — Pode deixar, sargento.

 Hortência teve que engolir mais essa. Paciência. Somente o tempo é capaz de curar e ajustar certas coisas. No final ela só espera que sua filha realmente entenda que não vale a pena viver infeliz só para que os outros vejam o suposto sucesso de seu relacionamento.

 Gilson passou com seu Sienna branco cercado pelo trânsito infernal da hora do rush e viu Hortência solitária no ponto de ônibus.

 — Devo perguntar se ela aceita uma carona? — perguntou para si próprio.

 O Uber achou melhor não ser o inconveniente da história passando direto e torcendo para que a branca com pinta de princesa não o reconheça.

 — Fica para uma próxima oportunidade, garota. — encolheu os ombros.


*


 Hortência revisava todo o material dado em sala de aula via vídeo. Cansada, com uma dorzinha chata de cabeça, louca por um café forte sem açúcar, tudo o que ela queria era ligar para Naiara e marcar um cinema ou então uma cervejinha com batatas fritas ali mesmo no bairro. Quando estava pronta para fazer isso, Milena entrou em seu quarto lhe propondo algo tirado da cartola.

 — Morar com seu pai, tem certeza? — Fechou o notebook.

 — Absoluta! — se jogou na cama.

 — Posso saber o porquê?

 — Porque sim.

 Hortência estava começando a se irritar.

 — Porque sim uma ova. Seu pai está morando longe, num bairro nobre. Já deve ter arrumado outra mulher. E a escola?

 — Já ouviu falar em transferência? — Desdenhou.

 — Se falar assim comigo outra vez eu…

 — Vai quebrar todos os meus dentes. Acertei?

 Hortência se levantou já fechando os punhos.

 — Olha aqui, garota…

 — Está vendo porque eu quero ir morar com meu pai? Você está totalmente fora de si. Está descontrolada. Precisa se tratar.

 — Vá a merda pirralha. Quem você pensa que é. Você não vai morar com seu pai e ponto final. Sai fora daqui. — Vociferou.

 Só lhe faltava essa agora. Uma menina que mal acabara de deixar as fraldas ditar as regras e dizer que uma mulher experiente como ela precisa de tratamento psicológico. É pura impressão ou as coisas estão se invertendo mesmo? Os papéis estão sendo trocados? Vivemos num mundo onde a pós-modernidade vem dominando, porém princípios precisam ser preservados. Agora, mais do que nunca, chegou o momento dela e Magno terem uma longa e decisiva conversa sobre a filha.

 — Alô, Magno. Quando podemos conversar?


*


 Para conseguir alguns raros momentos de paz e tranquilidade a fim de aliviar a mente do estresse do dia a dia, determinadas pessoas gostam do ar puro do campo. Outros já amam ouvir o som das ondas batendo nas pedras. Há também quem adote a meditação como válvula de escape do cotidiano agitado. Hortência Passos prefere esvaziar sua mente dentro de uma sala de aula na companhia de outras pessoas estudando aquilo que tanto almejou na vida.

 — Vamos lá, galera. Façam duplas. Hoje iremos trabalhar em equipe. — Disse o professor com bastante empolgação.

 Gilson não sabia o que fazer e nem o que dizer, por isso ficou parado e em silêncio. Hortência também ficou sem parceiro, mas ao olhar para o lado direito no fundo da sala seus olhos chocaram-se com os do motorista.

 — Vem! Senta aqui.

 A priori o trabalho é bem simples. Cada dupla precisa realizar uma receita e levá-la até os mestres. Bem fácil.

 — Oi. Me chamo Gilson.

 — Sou Hortência.

 O hálito de Trident de morango o golpeou. Gilson ficou ainda mais sem jeito.

 — O que iremos apresentar aos chefs? Doce ou salgado? — Indagou Gilson.

 — Eu trabalho melhor com salgado. Que tal um arroz cremoso?

 — Por mim está show.

 As duplas partiram para a cozinha e o tempo estabelecido foi de uma hora. Gilson e Hortência pareciam dois bailarinos em uma apresentação num auditório. Ela não se cansa de o admirar pela forma como trata cada ingrediente e sua atenção a cada processo da receita. E ele, por sua vez, não consegue tirar os olhos de suas mãos, pernas, busto e nádegas. Homens e suas fantasias.

 — Terminamos. — Comemorou Hortência.

 — Graças a Deus. Os mestres vão gostar.

 Gilson acertou em cheio. Os mestres não só gostaram como classificaram como o melhor prato. Uma coisa boa precisava acontecer na vida da vendedora. Pelo menos naquele dia. O Uber voltou para o seu lugar de origem muito contra sua vontade e permaneceu ali até Hortência sentir sua falta ao lado dela.

 — Como assim, meu parceiro? Volta pra cá.

 Ela não é só um rosto bonito e um corpo maravilhoso circulando por aí. Hortência é inteligente, agradável e boa de bate papo — conversar é com ela mesma diga-se de passagem — Gilson estava no céu.

 Dentro do carro após o término da aula ele a viu no ponto de ônibus. Buzinou algumas vezes até ter sua atenção. Hortência lhe jogou alguns acenos, mas ele queria mais do que isso.

 — Vem!

 O trânsito estava uma loucura, mas só ajudou para que ela passasse sem risco entre os outros veículos.

 — E aí, parceiro?

 — Oi! Você está indo para casa?

 — Sim, sim.

 — Eu sempre passo e a vejo no ponto. Você mora aonde?

 — Rua das Flores. Conhece?

 — Sou Uber. Conheço essa cidade inteira. Eu moro mais adiante.

 Gilson a deixou na esquina da rua das Flores. Foram os vinte e cinco minutos de resenha mais legais vividos por ambos. Gilson é um bom ouvinte, porém quando se coloca é impossível manter a compostura. Por diversas vezes ele arrancou boas gargalhadas da colega de classe.

 — Obrigada pela carona, Gilson.

 — Disponha. Como eu falei, eu moro mais adiante. Se você quiser eu posso te pegar aqui nos dias de aula. O que acha?

 — Aí! Eu não quero ser um incômodo e nem ser uma exploradora.

 — Relaxa. Qual o problema? Se eu posso ajudar…

 — Está bem. Salva o meu número.

 

*


 O movimento no escritório foi tão intenso que Magno quase perdeu o horário do compromisso com sua ex -mulher. Ser advogado estava em seus planos desde quando ele cursava o ensino médio. Seu pai também foi um advogado e não só isso, ele comandava um grande e bem requisitado escritório que prestava seus serviços para grandes personalidades do meio artístico e até político. Hoje, tal escritório já não existe mais. Logo após a morte de seu pai, as portas foram fechadas deixando algumas dezenas de clientes a ver navios e isso causou um certo desconforto para a família Leite. Graças a competência de Magno as coisas foram se ajeitando e hoje ele já consegue ter um bom grau de relevância no ramo.

 — Desculpa o atraso. Me enrolei todo no escritório. — Falou afrouxando a gravata.

 — Eu pedi um café, vai querer?

 — Boa!

 Assim que o pedido chegou, Hortência iniciou a conversa. Ela estava vestida esportivamente e cheirava a perfume adocicado.

 — Milena quer ir morar com você. O senhor tem alguma coisa haver com isso?

 — Não, mas, qual seria o problema? — Abriu o sachê de açúcar.

— A escola. Os amigos. O ambiente…

 — Ambiente, qual ambiente, o da minha casa?

 Hortência anuiu.

 — Eu moro sozinho, esqueceu?

 — Já deve ter levado milhares delas pra lá.

 Magno passou a mão livre na barba começando a ficar grisalha.

 — E o que isso lhe diz respeito?

 — Não vou deixar que minha filha vá morar numa casa que mais parece um motel de beira de estrada.

 — Um motel de beira de estrada, minha casa? Com que direito você fala assim?

 — Se está pensando que vai conseguir colocar minha filha contra mim está muito enganado. Vou pra justiça se for o caso.

 — De onde tirou essa ideia? Você está muito estressada, Hortência, está precisando transar um pouco.

 A vontade foi de arrebentar com a cara de deboche feita por ele ao falar tal coisa.

 — Ah, sim. Esqueci que você não é muito fã de uma boa trepada, não é, dona Hortência Passos?

 — Eu tenho nojo da sua cara. Nojo! — Levantou-se. — A conta é toda sua. — deu as costas deixando o estabelecimento.

 — Vai mesmo, sua geladeira. — balbuciou.


*


 Se ódio é uma palavra horrível o seu efeito é pior ainda. O ódio é um câncer que corrói tudo o que a pessoa tem de bom em sua essência, é capaz de transformar alguém naquilo que sempre temeu em ser: um monstro. Hortência não odeia Magno, apenas não quer tê-lo por perto nunca mais. Sua presença faz mal. Hoje, já divorciada e com mais tempo para pensar somente nela e em Milena, Hortência se admira do quanto ela precisou se abdicar de suas vontades para tentar manter alguns minutos de paz na relação. Qualquer outra pessoa já teria chutado o balde a muito tempo.

 De volta ao curso de gastronomia, enquanto aprende a fazer um bom pré preparo, sua mente vagueia num mundo escuro tão profundamente que ela não consegue ouvir Gilson a chamando ao lado.

 — Você não me esperou no ponto de encontro. — cochichou.

 — Me perdoe. Ando com minha cabeça a mil.

 — Se quiser conversar depois da aula…

 — Sim, claro.

 Quem sabe com toda sua simpatia e bondade Gilson não consiga fazer com que ela descarregue todo peso morto dentro dela? “Vejo sinais de uma bela amizade aqui. Vale a pena investir” pensou.

 

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