O Sol além da Chuva
Capítulo 6
De repente Hortência estava frente a frente com um rapaz de boa aparência, olhos marcantes, uma touca encardida do tricolor carioca mal ajustada na cabeça e barba rala por fazer. Apesar de seu aspecto não tão assustador, Jota passa a impressão de um jovem desiludido com sua própria existência. Foi o que Hortência sentiu a princípio.
— Jota, é isso?
— Sim! Jota é para os mais íntimos…
— Ah, sim. Então diga o seu nome por favor. Eu não quero ser íntima sua. — Hortência ainda estava parada na porta.
— João. — Balbuciou.
— O meu é Hortência. Agora sim devidamente apresentados. Não vai me convidar para entrar, João?
Jota hesitou por alguns segundos.
— Cola aí. — falou dando passagem.
A cada passo dado, a sensação que se tinha era que Hortência acabaria colocando o seu café da manhã para fora tamanho era o forte odor de coisas apodrecidas. Jota observava as suas reações já imaginando o que viria pela frente.
— A Milena disse meu endereço?
— Não. Eu a segui até aqui outro dia. — respondeu olhando para as paredes e o sofá. — Me diz uma coisa. A Milena se senta neste sofá?
— Ela já até dormiu nele.
“Quem te viu e quem te vê” pensou ainda reparando todos os cantos do apartamento.
— Além de usuário você ainda trafica.
O pomo de Adão subia e descia rapidamente.
— Qual a sua idade, João?
— Completo vinte quatro mês que vem.
— Tem noção de que você pode ser preso por manter relações sexuais com uma menor de idade? — Agora a expressão de Hortência começara a mudar significativamente deixando o rapaz apreensivo.
— Mesmo com o consentimento dela?
— Mesmo com o consentimento dela. — deu dois passos na direção de Jota que deu dois passos para trás.
— Mas…
— Ela te contou que o pai dela é advogado? Um bom advogado, melhor dizendo? É só ele mover os pauzinhos e pronto. Jota atrás das grades por anos.
— O que a senhora veio fazer aqui, afinal de contas, vai me denunciar, veio com a polícia… — abriu os braços.
— Eu vim lhe dar um recado. Afaste-se da minha menina. Você não é homem para ela. Entendeu?
— Não fui eu quem a procurei. — voltou a abrir os braços.
— Não me interessa. Quero você longe da Milena. Nunca mais a procure. — andou em direção a porta. — Passar bem, João.
*
O dia rendeu, demorou a passar. Essa foi a impressão que Hortência teve desde quando chegou do apartamento de Jota. Pensando com um pouco mais de calma ela viu o quanto se arriscou. Jota poderia muito bem ter reagido de uma outra forma.
— Aonde eu estava com a cabeça? — falou enxugando a louça.
Claro que, tudo o que aconteceu foi um gesto impetuoso de uma mãe desesperada por salvar sua única filha do submundo das drogas. Não foi isso que Magno e ela planejaram para ela. Filhos são sementes. A nossa continuação. Por mais que estejam separados, o futuro de Milena vai depender muito do que seus pais fizerem hoje por ela.
Louça lavada. Cozinha organizada. Hora de curtir um sofá e uma boa série no serviço de streaming. Gilson lhe veio à mente. Estaria Naiara falando a verdade quando disse sobre seus olhos brilharem ao mencionar apenas o nome do colega de curso? Essa dúvida ainda lhe causa um certo desconforto, mas o que ela não pode negar é o fato dele lhe fazer bem com sua presença. Seria tudo isso uma paixão sendo gerada? Que sentimento maior faz uma pessoa ligar para outra só para ouvir sua voz?
— Olá, que surpresa.
— Como vai? Ainda no trabalho? — Deitou-se no sofá.
— Terminando agora.
O coração deu sinal de vida deixando Hortência sem fôlego.
— Pode dar um pulinho aqui? — fez uma careta.
— Quando, agora?
— Se for possível. — outra careta e ainda mordeu a ponta do dedo.
— Beleza. Já estou chegando aí.
Antes mesmo da ligação ser encerrada, Hortência andou apressadamente até o banheiro a fim de um banho rápido porém caprichado. Minutos depois ela se encontrava com parte do seu belo corpo dentro do armário escolhendo uma indumentária para ocasião de um encontro mais modesto. Optou por um figurino mais fresco: bermuda jeans rosa e uma blusinha branca sem estampa. Quanto aos cabelos, melhor soltos. Vinte minutos depois Gilson chegava trazendo com ele algumas latinhas de Heineken além de uma senhora energia positiva.
*
Como um leão faminto, enfurecido e preso em uma jaula, assim Milena se comportava dentro do quarto enquanto sua mãe conversava e dava altas risadas dos casos contados por Gilson. Ao saber que Hortência a havia seguido até o prédio de Jota e com isso foi até seu namorado o pressionar colocando-o contra a parede, na mesma hora a adolescente declarou guerra a sua genitora. Isso não ficaria barato.
— Mãe, podemos conversar?
O clima que era pura descontração foi engolido pelo ódio e rivalidade.
— Em primeiro lugar. Dê boa noite ao Gilson.
— Fala tu. — disse sem ao menos olhar para Gilson.
— Em segundo lugar, não estou a fim de conversar com você agora.
— Você proibiu o Jota de me procurar, quem você pensa que é?
Gilson se viu no meio de um tiroteio.
— Hortência, eu já vou indo. Vocês duas precisam conversar…
— Nada disso, você fica. Milena, volte para o seu quarto agora.
— Eu não vou voltar para o meu quarto enquanto você não me explicar porque fez isso.
— Eu não estou a fim de criar uma filha maconheira, muito menos ser sogra de um traficante. Você sabia que o João vende além de ser usuário?
Milena foi pega de surpresa.
— Isso é mentira.
— Abre os olhos, filha, esse Jota não presta. Ficar com ele é um caminho sem volta, ele vai acabar preso ou morto, não há saída.
Gilson engolia seco o tempo todo.
— Vou ligar para o meu pai…
— Seu pai já está sabendo e ele super me apoiou. Volte para o seu quarto já.
— Que inferno. — berrou.
Silêncio. O motorista não sabia que fazer e nem o que falar. Hortência limitou-se em olhar para o nada mexendo nos cabelos.
— Melhor eu ir embora. Converse com sua filha.
— Peço desculpas. Você não precisava passar por isso.
— Imagina. Não precisa se desculpar.
— Fique, por favor. — segurou em sua mão.
Há tempos Gilson vem pedindo aos céus uma oportunidade de estar literalmente grudado à Hortênsia. Pelo visto há alguém lá em cima que ouviu o seu pedido e lhe proporcionou tal momento. Ao ocupar novamente o seu lugar no sofá, Gilson pode sentir bem de perto a textura e a suavidade da pele de sua pretendente. O motorista ficou embriagado pelo cheiro do hidratante usado por Hortência e isso fez com que sua virilidade fosse acionada. Deixando sua timidez fora de jogada, Gilson a aninhou em seus braços a permitindo molhar sua camisa com as lágrimas.
— Eu errei na criação dessa menina. — falou soluçando.
— Não é hora de pensar nisso. — a beijou na testa. — Você precisa parar e pensar no que irá fazer daqui pra frente. Se precisar de alguma coisa eu estou à disposição.
— Obrigada! Você é um fofo mesmo.
— Por um acaso você me chamou de gordo?
Limpando as lágrimas, Hortência se afastou.
— Imagina. Fofo no sentido de…
— É zueira! Sei que você não é “gordofóbica”.
— E nem racista.
— Vamos preparar alguma coisa na cozinha? — Esfregou as mãos.
— Que tal um macarrão alho e óleo? — Hortência se levantou.
— “simbora!”.
*
Caráter é algo que não muda. Por mais que a pessoa se esforce, faça algum tipo de tratamento ou seja acompanhada psicologicamente, caráter uma vez estabelecido, estabelecido para sempre. Nem mesmo a religião tem o poder de mudá-lo. A pessoa não se torna uma enganadora porque enganou. Ela é enganadora, por isso ela engana. Aos sete anos de idade todo ser humano já tem o seu caráter formado e não há como escapar disso. Naiara Oliveira desde sempre gostou de dinheiro e o que é pior, sempre gostou de ganhá-lo fácil.
Aos catorze anos ela conseguiu seu primeiro emprego. Não era de carteira assinada, mas dava para salvar o do final de semana. Tudo o que ela precisava fazer era manter as vitrines de uma loja de roupas finas limpas. O único peso que tinha que suportar era do borrifador com álcool e o da flanela. Naiara ficou apenas um mês nesse emprego. A desculpa dada aos pais foi que o trabalho era muito pesado. Lamentável.
O caráter da jovem morena não mudou, ele só piorou com o passar dos anos. Agora ela se encontra ali, aguardando a confirmação de mais uma transferência via Pix de sua irmã para a compra dos remédios dos pais.
— É disso que eu estou falando. — declarou ao ver o valor em sua conta.
Mais uma boa grana caindo fácil. Mesmo vendo a situação em que seus pais se encontram, ela segue sendo a mesma enganadora de anos atrás.
— Filha. Sua irmã mandou alguma coisa? — Perguntou sua mãe molhando o pedaço de pão no café com leite.
— Nada! — falou olhando para o celular.
— Poxa vida. Ela não tem cumprido com o combinado? — completou o pai.
— É complicado, papai.
— Já ligou para ela? O meu remédio da labirintite acabou já faz muito tempo. — Pegou mais um pedaço de pão.
— Já liguei, mas não adianta. — guardou o celular. — Vou sair hoje à noite. A cuidadora ficará com vocês.
— Vai sair outra vez, filha? — disse seu Francisco — tome cuidado. O mundo anda bastante esquisito.
Ela deu um beijo na testa de cada um.
— Pode deixar. Tomarei cuidado.
*
Se Naiara é capaz de parar qualquer trânsito por onde quer que passe, Lara, sua irmã mais velha, rouba pra ela a atenção de um estádio de futebol lotado de torcedores fanáticos. Se quando mais jovem ela despertava nos homens os desejos mais saborosos existentes, hoje, mais madura, Lara consegue fazê-los gritar imaginando fantasias. Seu esposo é sim um cara de sorte.
— O que foi amor, seus pais estão bem? Você está estranha.
— Graças a Deus meus velhos estão ótimos.
— E por que você está com essa cara? — parou de mexer no notebook.
— Nada! Só estou preocupada com minha irmã.
— Se você quiser podemos ir até lá. Que tal aparecermos de surpresa?
Lara desviou o olhar do esposo e se levantou.
— Vou pensar nisso.
*
Mais um dia de curso concluído com sucesso. Apesar do esgotamento mental pelas horas ouvindo o professor falar sobre como organizar bem uma cozinha profissional, Gilson ainda tinha pique o suficiente para trabalhar o restante do dia. Ele parou seu veículo no portão da casa de Hortência e aguardou seu desembarque.
— Obrigada mais uma vez.
— Não precisa agradecer. É um prazer poder ajudá-la.
— Ah! Gilson Santos, você é um verdadeiro “gentleman”. Eu me sinto muito bem com você.
— Idem. — Olhou para o parabrisa.
— Posso fazer uma pergunta?
— Até duas. — sorriu.
— O que um homem como você faz sozinho? Qualquer mulher do mundo seria feliz ao seu lado.
De cabeça baixa o motorista respondeu.
— Eu não atendo os requisitos exigidos. Sou pobre, negro, estou acima do peso e o que é pior: a minha aparência.
Hortência deu de ombros.
— O que tem sua aparência?
— Está me gozando? Olha bem pra mim. O que você vê?
Eles se encararam.
— Eu vejo tudo isso que você falou e um pouco mais. Eu vejo um homem extremamente inteligente, comprometido, focado, defensor e…
— Sim?
— Você é um achado que eu não abriria mão por nada. — pôs a mão em seu rosto.
A mão fina de Hortência foi delicadamente retirada do rosto e beijada.
— Eu esperava ser beijada em outro lugar.
Faltou pouco para Gilson ser acometido por um infarto.
— Sério?
— Adoraria.
O beijo esperado por Gilson não passaria de alguns segundos, mas Hortência o surpreendeu com minutos. Um beijo pra lá de gostoso, desejado, cheio de bons sentimentos. Como a vendedora precisava de algo dessa natureza. Após dois minutos tanto ele como ela se encontravam flutuando entre nuvens.
— Me deu até calor. — disse Hortência se abanando com as mãos.
— Quer que eu ligue o ar?
— Como assim? Você não estava com pressa para trabalhar? — brincou.
— Acho que não vou conseguir nem dormir depois dessa.
Ela mesma tomou a liberdade de ligar o ar condicionado sendo observada por um Gilson em ecstasy.
— Melhor agora. Vem!
Espero que Gilson não decepcione Hortência.
ResponderExcluirSobre Naiara, estou aqui pensando em qual atriz poderia interpreta-la…
Ótima novela! Estou amando