segunda-feira, 12 de junho de 2023

Máscara da Morte | Capítulo 2

 


A casa encontra-se em um silêncio sepulcral e num breu que, se Abílio Fontana não conhecesse tão bem aquele cômodo da casa, era capaz dele tropeçar algumas vezes nas quinas dos móveis. Ele não jogou o molho de chaves em cima da mesa como normalmente faz. Dessa vez ele o colocou e seguiu para a cozinha. Em tempos de paz, mesmo tarde da noite sua mulher o estaria aguardando com algo no forno sentada na mesa. Quantas foram às vezes em que ele precisou dizer para que ela não se preocupasse que ele esquentaria algo fácil e rápido quando chegasse do plantão e tantas foram às vezes em que ela não lhe dera ouvidos? A princípio essa teimosia de Zélia lhe causara desconforto, mas depois, pensando melhor, o policial chegou a conclusão que, tudo não passava de um gesto de carinho e atenção.

 

Hoje, ao entrar naquela mesma cozinha e não vê-la sentada o aguardando, foi como receber um forte golpe no estômago sem chance de defesa. Por falar em estômago, até que um sanduíche de frango cairia muito bem, mas isso não lhe daria uma boa noite de sono. O jeito foi tomar o resto de suco de uva de caixinha e cama.

 

Zélia ainda estava acordada. Ela lia sob a luz da luminária e ao ver o marido entrando o exemplar foi fechado.

 

— Oi! voltei. – disse ele retirando a jaqueta.

 

— Percebi. – puxou um pouco mais para cima o edredom.

 

— Se às coisas continuarem do jeito que estão, teremos nossas férias de volta. – desabotoou os botões da camisa.

 

— Carlos e Hortência ligaram, eles estão preocupados.

 

— E o que você falou?

 

— O de sempre. “Não se preocupem meus amores, o pai de vocês o único policial de toda cidade precisou interromper às férias para salvar o mundo”. Foi isso que eu disse.

 

Outro forte golpe no estômago.

 

— Meu amor, veja bem, eu...

 

— Nada do que você for falar agora, Abílio Fontana, vai justificar o que fez, então, boa noite. – cobriu-se.

 

Porcaria! O que se passa na mente das mulheres? Por que é tão difícil de entendê-las? Por que tudo precisa ser tão difícil, por que não é fácil, meu Deus do céu? Ela casou-se com um policial, deveria estar acostumada com esses imprevistos. Ou não? Estaria Zélia já cansada? Seu limite foi ultrapassado? De saco cheio? Como lidar com isso nessa altura da vida? Abílio deitou-se, mas não dormiu.

 

*

 

A noite não foi tão produtiva. Esperava ela encontrar pelo menos um agressor, um traidor, mas aprouve Deus ou qualquer outra entidade que tais seres repugnantes não cruzassem o seu caminho. O jeito foi voltar para casa e tentar repousar sua cabeça no travesseiro.

 

Pela manhã a sensação é sempre a mesma. Ela odeia quando isso acontece. Ao despertar seus olhos vão direto para onde aquele miserável ficava. O lado direito da cama. Ele não está mais aqui, o alívio é imediato. Pior que a perda da vida é a perda da liberdade. De fato Rose Maria enquanto esteve casada com Paulo Augusto não usufruía de sua liberdade. Ele era um homem controlador, autoritário, não dava a mínima para os seus sentimentos, é claro que isso não poderia acabar bem.

 

Rose Maria Silva afastou a cortina devagar e a primeira coisa que contemplou foi o céu nublado. Igualzinho aquele dia onde aquele covarde a atacou com tapas logo pela manhã. Ela não queria transar, estava com sono, não havia pregado os olhos a noite toda com medo dele. Ela se negou e pagou caro por isso.

 

— Você como mulher é um fracasso. – falou a plenos pulmões antes das sete horas da manhã.

 

Ouvir aquilo e mais de uma vez era como penetrassem em seu peito uma lança a curta distância e devagar. Bem devagar. Esse dia já seria ruim, mas Paulo Augusto fez questão de deixá-lo ainda mais tenebroso. Três tapas intercalados com xingamentos e pronto. Esse foi o café da manhã servido na cama pelo marido.

 

Essa dura realidade na vida de Rose Maria já não existe mais. Deus sabe o quanto ela o pediu que a livrasse das garras de Paulo Augusto por bem ou por mal. Demorou, mas aconteceu. Uma mulher livre, forte e disposta a retomar o tempo perdido. Ao abrir a bolsa de modo a se certificar da presença dos documentos antes de sair de casa, ela não pode deixar de vislumbrar de sua eterna companheira de guerra: a máscara de borboleta. Rose Maria a colocou no rosto e se olhou no espelho. Sorriu admirando sua bela imagem. Em seguida a retirou e lá estava ela. A cicatriz de queimadura. O que era alegria deu lugar ao ódio que a consumiu como uma fúria de um vulcão devastador, calma, Rose Maria, respira, não vá querer abraçar o mundo de uma só vez.

 

*

 

O portão foi aberto revelando um homem alto, bem-afeiçoado, vestindo uma jaqueta preta e botas marrons. Abílio Fontana se identificou para a mulher e entrou. A casa não estava arrumada, haviam brinquedos espalhados por todos os cantos, isso não é legal, um sinal de que pequeninos terão que seguir sem a presença do pai.

 

— O senhor toma café?

 

— Tomo.

 

— Tá! bom. Vou buscar.

 

Em cima do raque ao lado da TV um porta-retrato com a família inteira reunida sorrindo naturalmente. Em outro, apenas o casal de rostos colados, um pouco mais jovens, talvez da época em que se conheceram, assim pensou o detetive enquanto aguardava a volta da viúva.

 

— Prontinho. – apareceu segurando uma bandeja com duas xícaras.

 

— Ah! sim, obrigado. – pegou uma das xícaras. — às crianças estão na escola?

 

— Dormindo. Elas estão muito abaladas, então resolvi não levá-las hoje.

 

— Entendo. – tomou um gole. — vejamos, dona Selma. Como andava o relacionamento de vocês ultimamente?

 

— Bem, na medida do possível. Vagner quase não parava em casa devido ao novo trabalho, sabe como são às coisas, período probatório é terrível.

 

— Ele estava chegando muito tarde em casa? – outro gole.

 

— Sim.

 

— Mais ou menos a que horas?

 

A mulher apertou os olhos.

 

— Entre vinte uma e vinte e três horas.

 

— E aos finais de semana?

 

Abílio não prestava atenção somente no que saía da boca de Selma, mas sim no geral. O corpo também fala e pode dizer coisas das quais o coração já não suporta mais segurar.

 

— Essa pergunta não será nada fácil de lhe responder. Não bastasse sua ausência durante a semana, Vagner sempre arrumava um jeito de sair dizendo que faria bicos como garçom ou segurança em festas. As crianças sentiam muita falta dele.

 

— A senhora também, naturalmente.

 

Selma desabou e Abílio se sentiu culpado por isso. No fundo, toda mulher sabe das traições do marido. O Investigador sentiu haver chegado a hora de encerrar a conversa.

 

— Dona Selma, vou deixá-la em paz. Infelizmente o Vagner foi envenenado. Farei o que estiver ao meu alcance para dar cabo a esse caso. Fique tranquila.

 

— Obrigada, detetive.

 

Ser policial não é para qualquer um. Abílio foi ensinado a deixar de lado toda sua humanidade e permitir que, somente o profissional da lei assuma o controle. Ele voltou para dentro do carro refletindo o quanto tem sido profissional dentro de sua própria casa e ele ainda não tinha se dado conta disso. Seus filhos cresceram vendo um pai circular para cima e para baixo com um coldre e distintivo mesmo nós dias de folga. Eles também presenciaram sua saída repentina de comemorações em família e até aniversários para atender as solicitações de Fausto Maia. O profissional sempre esteve presente.

 

*

 

O suco natural de abacaxi chegou na hora certa, Rose Maria já não aguentava mais esperar.

 

— Desculpe a demora, senhora. – falou o garçom.

 

Ela nem sequer olhou para o funcionário, o assunto em voga no site de notícias a fez deixar tudo ao seu redor em segundo plano. “Homem é morto por envenenamento dentro de seu próprio veículo”. Primeiro veio o medo, a merda da polícia já deve estar em seu encalço, pensou. Em seguida veio a satisfação em ter sua obra macabra exposta na mídia. Nada mal, voltou a pensar. Ao erguer a cabeça ela viu o garçom vindo.

 

— Com licença, senhora, pediram para lhe entregar isso. – sacou do bolso do avental um pedaço de papel.

 

— Obrigada. Quem foi?

 

— O cidadão sentado perto da janela, mesa onze.

 

No papel havia o número de celular e um recado “pode me ligar agora se quiser”. Rose Maria olhou e viu que se tratava de um sujeito gordo, calvo e bigode estilo xerife de velho oeste. Interessante. Ela gesticulou dizendo que ligaria.

 

— Bilhetinho pelo garçom? Bem a moda antiga hein, gostei de ver.

 

— Os belos gestos nunca sairão de moda. Quer vir se sentar aqui?

 

— Ah! seja mais cavalheiro, venha você prá cá.


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