PAREDES
A recepção do departamento de polícia de Cabo Verde é uma
verdadeira feira com gente andando, falando, brigando e xingando horrores.
Jorge e Dulce Ornelas abriram caminho entre os presentes chegando aflitos ao
balcão onde uma policial fala quase que aos berros no telefone.
— Com licença, policial, nosso filho está desaparecido... — Jorge
bem que tentou falar.
Bastante imponente, a policial o pediu que aguardasse com um
gesto rápido com a mão livre. Dulce interveio.
— Moça, por favor. Meu filho está desaparecido há três dias.
Já não aguentamos mais de tanta agonia.
O telefone voltou para o gancho de uma forma bem delicada
para dizer ao contrário.
— Sou toda ouvindo. — abaixou os óculos de leitura.
— Meu filho, Sérgio Ornelas, não voltou para casa depois da
escola. Isso tem três dias. Nos ajude. — Jorge estava chorando.
Sem hesitar a policial solicitou a presença de um policial
disponível. Na porta do DPCV surgiu um homem negro de meia idade, cabelos e
cavanhaque brancos vestido com um blazer preto já bastante usado.
— Acompanhem aquele policial ali.
Já no interior do departamento onde ainda era possível ouvir
os burburinhos da confusão formada na recepção, o casal foi acomodado nas
cadeiras perto da mesa onde numa pequena placa há escrito o nome de seu dono.
Gilberto Pedrosa.
— Bom dia! Desculpem a celeuma lá na entrada e também a
Rodrigues, ela é uma boa pessoa, mas infelizmente não consegue trabalhar com
essa gama de informação. Em que posso ser útil?
Dulce foi acometida outra vez por uma onda de choro e por
isso Jorge precisou tomar a frente.
— Nosso filho, Sérgio, está desaparecido há três dias. Ele
não voltou para casa depois da escola.
Enquanto o pai fazia seu relato, Gil Pedrosa anotava tudo em
um minúsculo caderno de brochura e capa marrom. Dulce, já recomposta, olhou e
achou engraçado um homem daquele tamanho possuir um objeto tão desproporcional
ao seu tamanho.
— Muito bem. — começou Gil. — infelizmente, senhor Ornelas, o
seu relato não diz muita coisa. Vou precisar de mais informações. Prometo
iniciar essa investigação imediatamente. — abriu a primeira gaveta. — esse é o
meu cartão. Quero que ligue pra mim caso haja alguma novidade. Tudo bem? E não
se preocupem. Manterei os senhores informados a cada avanço.
— Muito obrigada, investigador Pedrosa. — Dulce guardou o
cartão no sutiã.
*
Às 18 horas o DPCV já havia esvaziado bastante e Gil Pedrosa tomava
sua oitava xícara de café com leite analisando alguns documentos em sua mesa. Com
esse, já somam dez desaparecimentos em um pouco mais de quinze dias. Seu alerta
foi acionado. Rodrigues andava em direção ao banheiro quando foi abortada pelo
detetive.
— Você sabia disso?
— Do quê? — arqueou uma das sobrancelhas.
— Nove pessoas desaparecidas e agora mais um. Como assim?
Rodrigues bufou dando de ombros.
— Vou fazer xixi e já conversamos sobre isso.
Enquanto aguardava a volta da colega de profissão, Gil
recebeu uma ligação. O nome que apareceu na tela do celular o deixou entristecido.
— A que horas você vem? Eu não tenho a noite toda não.
— falou Elisabete com rompante.
— Bete, calma, tá. Eu devo passar aí amanhã.
— Mais que inferno. Você disse que passaria HOJE.
— Calma, Bete. Não precisa gritar. Não vou poder passar aí
hoje. Apareceu um caso de última hora...
— Tá bom, tá bom. Amanhã que horas então?
— Às nove. Fechado?
Tarde demais. Elisabete já havia desligado. Gil se recostou
na cadeira. Fechou os olhos. Inspirou e expirou profundamente. Quando os abriu Rodrigues
olhava condescendentemente para ele.
— Já vi tudo. —
colocou às mãos na cintura.
— Pois é. Eu mereço.
Silêncio.
— Veja bem, Pedrosa. Sobre essas pessoas desaparecidas, quem
estava a frente do caso era o Dimas e você conhece muito bem como o Dimas é,
não gosta de ter trabalho e por isso...
— É! Ele deixou o caso de lado. Mas o pior não é isso?
Ninguém se manifestou até agora. Pode deixar. O paizão aqui vai assumir. Quero que
me passe tudo.
— Pode deixar.
*
Que sensação estranha sentida pelo agente ao estacionar e
olhar para o prédio onde outrora era o seu endereço até algumas semanas atrás.
Antes de descer do veículo, Gilberto deu uma olhada no espelho percebendo o
quanto envelhecera desde então. Mas ele também sabe que, se há algum culpado
nessa história, esse alguém é ele e por isso todo o sofrimento que vem vivendo ele
vem suportando sem reclamar um instante sequer.
Apenas um toque na campainha. Essa era sua marca registrada
sempre que chegava do plantão. A porta foi aberta por Carla sua filha mais
velha.
— E aí, lindona. — a beijou na cabeça.
— Oi, pai.
— Aonde está seu irmão? — Gil permaneceu parado na porta.
— Foi para a explicadora. O senhor vai ficar parado aí?
Bete surgiu na sala segurando um aparelho de TV de vinte
quatro polegadas olhando friamente para o policial.
— Ele só veio buscar a TV dele, filha. Toma.
Um nó foi formado na garganta do detetive ao segurar o
aparelho e também ao ver Elisabete dando às contas para ele.
— Não demore, Carla, você ainda precisa terminar de ajeitar
seu quarto. — disse sumindo da vista dos dois.
— É melhor eu ir.
— O senhor já arrumou um lugar para morar?
Cabisbaixo, Gilberto meneou positivamente a cabeça.
— O papai precisa ir agora, filha.
Voltou a beija-la.
De volta ao carro antes de virar a chave, Gil se estapeou
algumas vezes se auto punindo. Seu rosto ardia enquanto olhava para a TV no
banco de trás pelo retrovisor. Pouco a pouco a ficha tem caindo e a consciência
da perda de sua família vem ficando cada vez mais evidente para ele. Uma vida
inteira foi trocada por instantes de prazer sem amor. Só um idiota seria capaz
de uma coisa dessas. Ele virou a chave de seu HB20 branco 2016 e partiu para a
residência dos Ornelas.
*
— Sente-se, detetive. O senhor quer alguma coisa? Acabei de
passar um café. — disse Dulce ainda com o rosto inchado de tanto chorar.
— Aceito. — ocupou a ponta da poltrona.
— Puro ou com leite?
— Com leite se não for abusar.
— Imagina.
Fotos. Fotos da família reunida. Elas estão por toda parte.
Isso mexe demais com o policial que precisou ser forte mais uma vez. Eu
destruí a minha.
— Prontinho, investigador.
— Ah, sim. Obrigado.
Dulce também trouxe uma caneca de café puro para ela. Antes
que Pedrosa perguntasse ela justificou a ausência de seu marido.
— Jorge é autônomo, então...
— É brabeza. — deu um gole. — e o Sérgio, como ele é? Filho único,
pelo que sei?
Dulce estava
impressionada com o poder de dedução do detetive.
— O senhor tem filhos adolescentes?
Gil anuiu lembrando-se de Carla.
— Então o senhor já deve imaginar o que passamos. Sérgio nos
últimos tempos nos deu muito trabalho quanto às várias horas agarrado no
celular ou no computador. Às notas na escola caíram vertiginosamente. Jorge o
proibiu de jogar durante a semana.
A próxima pergunta talvez causasse um certo desconforto na
dona de casa, mas não importa. Trata-se de uma investigação policial e qualquer
informação tem peso de ouro.
— Algum problema com drogas ou outras coisas ilícitas?
Dulce abaixou a cabeça. De repente seu rosto se ruborizou.
— Certa vez achamos maconha na gaveta de roupas dele. Foi
terrível. Jorge o ameaçou dizendo que o expulsaria de casa. Os dois brigaram
feio.
— Brigaram, como assim, chegaram às vias de fato? — se
ajeitou na poltrona.
— Não, mas faltou pouco.
Deixando a caneca vazia sobre a mesa de centro, Gilberto mudou
o rumo das perguntas tirando a mulher daquela situação embaraçosa.
— E as amizades dele, conhece algum amigo, Sérgio tem
namorada?
— Já teve. Dei graças a Deus quando eles romperam. Às notas
só pioraram depois do surgimento daquela menina.
Silêncio.
— Quem aparece aqui, de vez em quando é um tal de Dudu.
Colega de escola.
— Sabe o nome completo desse Dudu, onde ele mora?
— Infelizmente não. Só sei que são da mesma classe.
Gil retirou do bolso interno do paletó o seu caderninho de
anotações, o mesmo que usou na delegacia. Dulce sentiu vontade de rir.
— Muito bem, dona Dulce, por enquanto é isso. — terminou de
escrever. — o trabalho só está no início, então... espero que confie na
instituição.
— Claro que confio.
*
Gil mentiu para sua filha quando a mesma o perguntou se ele
já havia arrumado um lugar para morar. Na verdade o investigador tem se virado
dormindo dentro do carro e isso o vem deixando com dores terríveis nas costas.
Voltando para o DPCV a fim de iniciar de fato o trabalho, Luana lhe veio a
mente. Sem pensar duas vezes ele ligou para ela.
— Sim?
— Está fazendo o quê?
— Preparando o meu almoço, porque?
— Posso passar aí, rapidinho? — reduziu ao passar por uma
lombada.
— Sério, assim, no meio do dia?
— Nós não iremos transar, prometo não forçar a barra.
— Eu te conheço, Gilberto, conheço bem essa conversinha.
Parou num cruzamento aguardando a abertura do sinal.
— Estou falando sério, gata. Preciso falar com você.
— Aí, aí, aí. Tá bom. Vem.
A equitação é uma das posições sexuais preferida do casal.
Tanto para Luana como para Gil, transa perfeita é aquela em que há olho no
olho. Ao chegar ao clímax pela segunda vez, a vendedora de loja de sapatos
perdeu as forças caindo sobre o corpo do policial que a acompanhou na explosão
do prazer.
— Sou uma trouxa mesmo, cai na sua conversa fiada. — disse
ofegante.
— Não diga isso. — riu.
Luana tirou seu peso de cima do agente rolando para o canto
da cama.
— O que quer conversar comigo?
— Posso passar um tempo aqui?
Luana prendeu a respiração não acreditando no que acabara de
ouvir.
— Passar um tempo aqui, nesse barraco? — cobriu os seios.
— Quitinete.
— Que seja. Por que você não aluga um apartamento pra você,
seu salário na polícia é razoável.
— Em breve estarei fazendo isso. É só por um tempo mesmo até
às coisas se ajustarem. — se sentou.
A vendedora ficou em silêncio olhando pro nada. Gil acariciou
sua perna por baixo do lençol.
— Não se sinta culpada. Se há alguém inocente nessa história,
esse alguém é você. O errado sou eu.
— Às vezes tento me colocar no lugar de sua ex mulher. Como é
mesmo o nome dela?
Pedrosa expirou.
— Bete.
— Não deve ser nada fácil ser traída e...
Gilberto se pôs de pé.
— Posso ou não ficar aqui por um tempo?
Ela colocou a ponta do dedo mínimo na boca processando a
proposta.
— Claro que pode, mas promete não encher meu saco e nem
bagunçar meu barraco?
Gil deitou-se sobre ela a beijando no pescoço lhe propondo outra
coisa.
— Não se preocupe com o aluguel, esse mês é por minha conta.
— Ah, sendo assim. Então me possua.
*
Acordar e perceber que a seu lado Elisabete já não se
encontra mais, não por que ela acordou primeiro para ir a academia ou
simplesmente desceu para preparar o café mais cedo, mas sim porque o seu relacionamento
com ela definitivamente acabou, deixou o coração do detetive partido em
milhares de pedaços. Gilberto é um homem grande e a cama de Luana não é lá
essas coisas, ela não comporta muito bem duas pessoas ao mesmo tempo, mas é melhor
do que nada ou dormir no carro. Luana seguia dormindo com parte de seu corpinho
exposto o que fez com que o policial sentisse vontade de transar naquele
momento. Segura sua onda, tigrão. O dever lhe chamou e ele prontamente o
atendeu.
*
A escola particular aonde Sérgio Ornelas estuda não é a das
mais caras de Cabo Verde, tão pouco a mais requisitada, porém possuí uma
fachada atraente com sistema de segurança eficiente e o que é mais importante,
é um colégio bilíngue. Gilberto certamente matricularia Carla e Gerson na instituição.
Ao ouvir o falatório dos alunos vindo do pátio, Gil
lembrou-se mais uma vez do casal de filhos. A saudade apertou pra valer. Ele
não conseguiu segurar o choro. Aonde você estava com a cabeça, cara?
Voltou a se estapear. Quando se uniu a Elisabete ele prometeu para ele mesmo
que ela seria o suficiente para ele em tudo, porém Gilberto não contava com
Luana e tem pagado caro por isso.
— Droga! — desembarcou.
Já na sala da diretora ainda sendo devorado por seus arrependimentos
e também pelos olhares não tão discretos da mulher sentada atrás daquela mesa
enorme de madeira bruta, Pedrosa aguarda a chegada de Eduardo França.
— Mandou me chamar dona Sofia?
Dudu é um garoto alto, bastante magro com marcas de acne por
todo o rosto.
— Sim! Esse é o detetive Gilberto Pedrosa. Entre e sente-se.
Assustado, o menino ocupou a cadeira a esquerda do agente.
— Como vai, Eduardo?
— De boas!
— Você e o Sérgio Ornelas são amigos a muito tempo?
Disse que sim com a cabeça.
— Quando esteve com ele pela última vez?
Dudu desviou o olhar para a janela.
— Ele está desaparecido há quatro dias. Você sabia disso?
Gil percebeu um ar de surpresa em seu semblante.
— Não acharia estranho um cara que eu julgo ser meu amigo
desaparecer por tanto tempo e eu sequer me preocupo com isso?
Dudu já não tinha mais aquela expressão de antes, aos poucos
ela vai cedendo espaço para a tristeza e preocupação.
— Cara, me ajude a salvar seu amigo. Ninguém tem falado, mas
há outras pessoas desaparecidas e eu tenho certeza que há uma ligação entre os
casos.
Sofia tentou intervir.
— Detetive, por favor, sem pressão.
— E então, Eduardo? Seu amigo Sérgio pode estar correndo perigo.
— Ah, que se dane. — falou entre os dentes. — eu vou falar.
Começou bem. Show!
ResponderExcluirCaracaaa, bom demais hein? Fiquei curiosa agora pra saber o que Dudu tem a dizer sobre o desaparecimento do Sérgio. Já quero parte 2!
ResponderExcluirExcelente, ansioso pela parte 2
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