segunda-feira, 24 de junho de 2024

A Bíblia do Assassino | Parte final | Último capítulo

 


A Bíblia do Assassino 

Parte 3 

Capítulo final 



 Nato e Joicinha se banham juntos depois de uma longa tarde e início de noite de amor. Ambos têm ciência de que toda essa curtição de início de relacionamento um dia perderá sua intensidade e por isso eles fazem questão de aproveitar a boa fase. Nato foi o primeiro a deixar o banheiro depois de ter o seu pedido de um terceiro tempo recusado. Com fome e também a fim de tomar uma cerveja, o policial foi até a cozinha envolvido apenas por sua toalha azul bebê, um presente dado por Joyce quando completaram um mês de namoro. Seu celular tocou alto na mesa de centro da sala.

 — Que número é esse? Alô?

 — Oi, Renato, sou eu a Júnia. — voz aflita.

 — Oi, Júnia. O que mandas?

 — A Regina saiu para caminhar na praça pela manhã e não voltou até agora. Estou preocupada.

 Joicinha deixou o banheiro nua ainda se secando. Nato olhou para a bela paisagem à sua frente, mas sua mente não estava ali.

 — Ela não atende o telefone?

 — Não!

 — Tá certo. Pelo que sei ela costuma fazer os exercícios na Ministro Paulo Guedes. Vou dar uma olhada por lá e buscar por informações.

 — Posso ir com você? — perguntou chorando.

 — É melhor você ficar em casa caso ela apareça. Estou saindo agora.

*


 Após a terceira volta completa em torno da praça, Nato Pinheiro parou o carro próximo às barraquinhas de lanche e doces. Antes de descer ele buscou na galeria uma foto de Regina.

 — Oi! Por um acaso a senhora viu essa moça?

 A vendedora pôs os óculos e depois de alguns segundos ela pode responder.

 — Essa moça esteve aqui de manhã. Eu sei porque ela é a única que me dá bom dia.

 Educação salva vidas.

 — Então ela veio pra cá hoje de manhã e a senhora viu ela indo embora?

 — Moço! Eu sei de tudo que acontece aqui nesta praça. — riu. — Alguns me chamam de bisbilhoteira, mas eu nem ligo.

 — Ela foi embora sozinha? — Nato estava sem paciência.

 — Não! Ela entrou num carro preto. Um carro bonitão.

 Seria o Cruzer sedan preto do outro dia? Pensou olhando ao redor.

 — Está certo. Valeu pela informação.

 De volta ao interior do veículo, o detetive se pôs a pensar em quem seria esse misterioso perseguidor do Cruzer preto. Claro que em sua mente milhares e milhares de possibilidades brotaram ao mesmo tempo. Em todos esses anos como investigador, Pinheiro já colecionou inimigos em diversas partes de Porto Celeste, gente barra pesada que daria tudo para vê-lo morto. Seriam covardes a esse ponto? Lógico que seriam. Não existe bandido bonzinho. Ele girou a chave ligando o motor e mais uma vez ele foi invadido por uma enxurrada de pensamentos e entre alguns deles estão presentes: Tiago Garcia e Felipe Corrêa. Teriam eles alguma ligação? O HB20 disparou rua acima em direção ao departamento de polícia. Jorge Gama precisa saber disso.

*


 Na época em que boa parte dos seus plantões eram tirados nas ruas dentro de uma viatura quente, Jorge Gama não era um agente brilhante. O que o fez chegar a posição em que se encontra hoje foi justamente sua insatisfação com sua mediocridade. Gama correu atrás, estudou, se esforçou e provou para todos o diamante que ele era. Percebendo a falta de concentração de Renato em analisar os vídeos da câmera de segurança da praça, o chefe assumiu sua posição.

 — Ali está ela. — falou Jorge mostrando Regina chegando à praça.

 — Sim, é ela mesmo. — Nato era a aflição em pessoa.

 Em silêncio os dois acompanhavam volta por volta da ex de Pinheiro até ela ser abordada por um veículo preto o qual fez Nato saltar da cadeira.

 — É o mesmo Cruzer preto que me seguiu outro dia. Meu Deus.

 — Vou dar um zoom e pegar o número da placa. — meia dúzia de cliques e pronto. — anotou?

— Anotado.

— Ótimo. Faremos uma busca no sistema e descobriremos quem é esse cara.

 O celular de Nato tocou. Era Arthur apreensivo.

— Fique calmo, filho. Já estou trabalhando nisso.

 — Encontre este miserável. 

 — Pode deixar comigo, filhão.

 Gama estalou as falanges chamando atenção de seu agente.

 — Pertence a Rogério Galvão.

 Renato olhou fixamente para a foto do sequestrador aguardando novas informações sobre o mesmo. Sob o som da digitação às imagens de Tiago e Felipe se projetaram em sua mente, seu corpo foi acometido por um ligeiro arrepio.

 — Ele é de Porto Celeste. Um playboy universitário… — disse Jorge.

 — Tiago Garcia e Felipe Corrêa. — balbuciou.

 — O que eles tem a ver com isso?

 — Tenho que falar com algum deles e rápido.

 — Vou com você.

*


 Um copo com água. Era tudo o que Regina queria depois de gritar horrores com Rogério sentado bem a sua frente. Deitada e cuidadosamente amarrada à pequena cama que pertencia a seu avô, a namorada de Júnia sente sua garganta arder em chamas cada vez que engole.

 — Pode me dar água seu monte de merda?

 — Claro que posso. Só que eu não quero. Você é muito estressadinha, sabia?

 — E você é um babaca. — cuspiu.

 — Nossa! Uma mulher tão linda fazendo uma coisa tão nojenta. Foi por isso que seu marido a deixou, não foi?

 — Cala boca seu merda. — berrou.

 — Por falar em seu ex marido. Eu andei sondando vocês e descobri que a senhora tem uma namorada e que bela namorada, meus parabéns. Ele deve ter se sentido um lixo como homem. Imagina ser trocado por outra mulher. Que coisa. Eu pensei em trazê-la, mas isso não afetaria tanto o Renato. Pensei no filho, na namoradinha do filho. Até mesmo a nova mulher do Renato eu sondei e então pensei. A ex. Essa sim afetaria ele em cheio.

 — Vai me matar não é? — chorou.

 — Sim! — pegou uma caneta piloto azul no bolso da calça. — mas antes permita-me fazer algo.

 Em meio a agitação de sua vítima, Rogério desenhou um sol em sua testa.

 — Pronto! Você foi batizada.

 — O que significa isso? — gritou.

 — É uma história muito longa. — olhou para a antiga agenda de seu avô na mesa ao lado. — Ele ficaria orgulhoso. — Regina voltou a se agitar e gritar. — O sol da justiça vai raiar. — se levantou.

*


 Felipe Corrêa traz nos olhos o resultado dos meses tenebrosos vividos dentro daquele complexo penitenciário. Noites mal dormidas. Uma alimentação muito mal preparada, sem gosto, de aspecto bem próximo das antigas lavagens devoradas por porcos no passado e sem falar do clima hostil por parte dos outros detentos. Numa tentativa desesperada de se ver livre das paredes frias e rabiscadas de sua cela, o jovem vendedor tentou dar cabo de sua vida há duas semanas sendo impedido por um dos companheiros que segurou suas pernas sustentando seu corpo. Diferente de Tiago, Felipe é um homem fraco, frágil e sem disposição.

 — Quem é Rogério Galvão? — Nato perguntou mais uma vez.

 Ouvir o nome de Rogério por mais de uma vez deixou claro o tipo de sentimento que Felipe tem pelo ex amigo. Sua vida promissora foi encerrada graças ao poder horrendo de  persuasão  do herdeiro legítimo dos Galvão e agora, por causa de um pacto idiota ele se encontra trancafiado feito uma fera selvagem com outros piores do que ele.

 — É o responsável por eu estar aqui.

 — Então, quer dizer que, esse tal Rogério Galvão é o mandante dos outros assassinatos também? — Jorge Gama se inclinou um pouco mais na direção de Corrêa.

 — Pode-se dizer que sim.

 — Sofia Cury e Carlos Henrique Dias. — agora foi a vez de Nato. — Qual a ligação, me explique isso.

 — Não tem explicação, detetive. Nós encontramos uma agenda do avô daquele maldito e me parece que fomos amaldiçoados ou encantados por um espírito de um assassino. O avô dele também cometeu alguns homicídios e…

 — Você está querendo me convencer de que estamos diante de um caso sobrenatural, é isso? — Havia um certo rompante na fala do chefe de polícia.

 — Se é algo sobrenatural ou não, isso eu não sei. Eu só sei que saímos diferente do sítio do avô do Rogério.

— Diferentes como? — Pinheiro perguntou.

 Felipe de repente ficou com o olhar perdido e marejado.

 — Deus sabe o quanto eu lutei contra a vontade de matar o Carlos, mas a força dentro de mim era maior e só passou quando eu…

 — Quando você cortou a garganta dele. — completou Gama.

 Felipe assentiu.

 — Os senhores desejam saber para onde Rogério levou sua vítima? Eu respondo.

 — Para esse tal sítio. — supôs Nato.

 — Lamento em dizer, mas é bem provável que essa pessoa já esteja morta. Sinto muito.

*


 O que será de Júnia, Arthur ou até mesmo dele se o pior acontecer a Regina? Como ficarão as coisas já bastante complicadas entre seu filho? Olhando a paisagem do banco do carona, Nato nada vê além de borrões que passam em alta velocidade. Na condução da viatura descaracterizada, Jorge Gama tenta imaginar o que se passa na cabeça de Renato ao mesmo tempo em que agradece aos céus por não ser ele no centro do furacão.

 Você chegou ao seu destino, informou a voz de GPS. Nato pegou a pistola no porta-luvas e foi impedido de descer quando Gama o segurou pelo antebraço.

 — Saiba que estou contigo.

 — Valeu, chefe.

 — Vamos nessa. — abriu a porta.

 O portão de entrada de veículos estava fechado, porém sem o cadeado. Até aí foi muito fácil de entrar. Temendo a existência de cães ferozes, Nato Pinheiro caminhou bem devagar apontando sua arma em todas as direções.

 — Parece abandonado. — sussurrou Gama olhando ao redor.

 — Consegue ver câmeras? — parou perto de um poste de iluminação.

 — Não.

 — Sem câmeras, sem vigia e o portão praticamente aberto. — Pararam de andar. — onde está o Cruzer preto?

— Talvez ele tenho parado logo atrás da casa. — Gama deduziu.

 A dupla caminhou lentamente até alcançar a grande casa do sítio que também parecia abandonada. Diferente do portão de entrada ela se encontrava trancada. O silêncio era assustador. Jorge deu a volta enquanto Nato tentava olhar o interior da casa pelos vidros canelados e sujos das janelas.

 — Ei, Nato. Venha comigo.

 Gama apontou para o quartinho no alto do sítio. A tensão só aumentou.

 — Vamos lá. — Renato falou.

 Repetindo o mesmo processo os policiais subiram morro acima sorrateiros feito serpentes. A cada passo dado o coração do investigador batia forte lhe sufocando.

 — Eu entro e você fica na contenção. — orientou Jorge.

 — Positivo.

 O chefe da polícia de Porto Celeste desapareceu da vista de seu subordinado. Nato permaneceu do lado de fora assim como ordenara seu superior. Não demorou muito para que Jorge aparecesse na porta colocando sua arma de volta ao coldre.

 — Pode relaxar, Pinheiro.

 — O houve? — Nato também guardou sua pistola.

 — Mais que merda, merda. — chutou duas vezes a velha porta.

  Regina ainda deitada, amarrada e com um sol desenhado em sua testa, morta com um corte profundo em seu pescoço. No canto o corpo de Rogério pendurado por uma corda nova, com os olhos arregalados. Nato não suportou o impacto da imagem caindo no chão empoeirado aos berros. A fúria de Jorge Gama foi tão devastadora, que ele chegou a sacar sua pistola apontando -a contra o corpo de Rogério, mas não atirou.

 — Maldição, maldição. — vociferou. Pegou o celular e ligou para o departamento pedindo suporte.

*


 A vida é feita por decisões. Felizmente alguns decidem vivê-la da melhor forma possível, seja em qual classe social em que a pessoa estiver inserida, ela decidiu fazer de sua existência um campo florido. Já outros preferem fazer da vida um mar agitado, uma tempestade andando sempre à beira do abismo. Três jovens decidiram dar ouvidos a uma profecia sem fundamento, sem sentido e através disso outras quatro almas foram riscadas deste mundo a troco de nada. Famílias em peso carregarão esse fardo por causa de uma decisão impensada.

 Ao tomar ciência de toda a história, Nato Pinheiro juntamente com seu chefe se entreolharam tentando buscar um no outro uma resposta plausível e só o que conseguiram dizer foi:

 — Que loucura. — Nato meneou a cabeça.

 — Você acredita em maldição hereditária? — Jorge Gama pegou a velha agenda.

 — Depois do que ouvi…

 — A bíblia do assassino. Cruzes. — a fechou. — Estou pensando seriamente em abrir uma investigação sobre os crimes cometidos por Geraldo Galvão, o que acha?

 — Acho bom, mas peço que me tire dessa, por favor.

 — Claro, claro. Pensando melhor, vou lhe dar uma licença, você está precisando ficar um tempo com seu filho, não deve estar sendo fácil.

 — Obrigado, chefe. A coisa está complicada mesmo.

  — E a Júnia? — Jorge se levantou para guardar a agenda na gaveta.

  — Então. Nós conversamos bastante no velório e depois do sepultamento eu liguei para ela. Vivendo um dia por vez. É o jeito.

 — Sim, claro. Veja bem. Estou antecipando suas férias. Vá pra casa e descanse. Dispensado agente Pinheiro.


Dois anos depois.


 Arthur praticamente invadiu a recepção da maternidade com Thais a seu lado lhe pedindo calma o tempo todo. De barba e cabelos bem crescidos, aos dezoito anos o filho de Nato mais parece um personagem bíblico do que um estudante de matemática. Thais Gusmão também mudou, mas não tão radicalmente, apenas optou por tingir os cabelos de vermelho vivo.

  — Por favor, qual o número do quarto de Joyce Pinheiro? — Arthur perguntou a recepcionista.

 Vagarosamente a funcionária da maternidade buscou no sistema deixando o universitário ainda mais aflito.

 — Calma, amor. — pediu outra vez Thais.

 — É o 407.

 — Obrigado. — disparou em direção ao elevador.

 Quando o casalzinho chegou, Nato tinha nos braços sua filha sendo observado por Joicinha. Arthur deu um beijo na testa da madrasta e depois abraçou o pai por trás.

 — Parabéns velho.

 — Valeu, filhão. Quer segurar sua irmã um pouco?

 — Lógico.

 Assim como o pai, Arthur passou a andar pelo quarto com a pequena em seus braços.

 — Pai e filho babões. — disse Thais ao lado de Joyce.

 — Vou aproveitar que vocês chegaram para descer e registrá-la. — Nato pegou a bolsa com os documentos.

 — E já decidiram o nome? — Thais perguntou.

 — Ana Regina. — declarou Nato emocionando a todos naquele quarto.

 — Deus abençoe irmãzinha. — Arthur a acolheu ainda mais nos braços.

 Não importa o que aconteça, a vida sempre será maior que qualquer adversidade. Maior que qualquer desafio e sim, infinitamente maior que nós mesmos.

Fim.




 



 

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