domingo, 29 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 4

 


4


     Servir a Deus é algo muito sério. A caminhada com Cristo nunca será uma tarefa fácil. A partir do momento em que tomamos a decisão de seguirmos ao que Ele designou para quem quiser andar em seus passos, é preciso ter a consciência de que estaremos declarando guerra e essa guerra não é contra o nosso semelhante. Esse conflito é contra nós mesmos. Contra nossos pensamentos, atitudes, vontades e gestos. É por isso que se faz necessário uma entrega, uma rendição. O que outrora falávamos que era a nossa vida, agora que somos Dele, a vida já não nos pertence mais. Jamais podemos tomar qualquer decisão sem antes consultá-lo, seja em qual área da vida for. Jesus Cristo é quem está no controle e ponto final.

       Dona Nair serve a Jesus desde a sua tenra infância, já viveu o suficiente para saber o que agrada e o que não agrada a Deus. Quando jovem, ela foi convidada para assumir o ministério da juventude. Ela topou após insistentes pedidos da liderança e também longas jornadas de oração nas madrugadas. Ao ouvir o “sim” de Deus, ela se dirigiu ao pastor para acertar os detalhes no dia seguinte. Foram anos à frente da juventude. Lutas, vitórias, derrotas, mas no final, ao passar a relatoria para outro, todos os liderados estavam cientes o que é de fato servir a Deus.

         — Eu me lembro. A senhora batia muito nessa tecla. Servir a Deus não pode ser de qualquer maneira. — Sula imitou a mãe falando.

         — E mesmo não estando mais na ativa eu sigo com o mesmo pensamento e é por isso que eu te chamei para uma conversa sobre esse rapaz.

             — O que tem o Miguel?

         — Ele diz que serve a Jesus e tudo mais, entretanto não consigo ver verdade nele…

       Sula interrompeu a fala da mãe com um gesto de mão.

        — Cuidado com o que vai dizer, mãezinha. Não caia no julgamento.

         — Sim, claro. Terei cuidado. Quem sou eu para julgar o meu semelhante. Filha, eu lhe peço, nunca tome uma decisão sem antes orar ao Senhor. Pergunte se ele, Miguel, é de fato o homem que Ele quer em sua vida.

       Aquela conversa não estava agradando nem um pouco a Sula. Normalmente quando não nos encontramos no centro da vontade do Senhor não gostamos de sermos confrontados.

         — Pode deixar, dona Nair. Terei cuidado. — bocejou.

        — E quanto ao André?

        — André, o que tem ele? — A expressão de Sulamita mudou drasticamente.

         — Você nunca mais falou nele.

        — Óbvio que não. André foi um capítulo na minha vida que eu não tenho a mínima vontade de lembrar.

        — Sério mesmo, você o odeia tanto assim? — Nair apertou os olhos atrás dos óculos.

        — Não é questão de ódio, ele só não foi alguém que Deus queria em minha vida. Só isso. — outro bocejo.

        — Uma pena o casamento de vocês ter acabado. Apesar de tudo o que houve, eu conseguia ver um futuro ali.

       Sula não respondeu, apenas olhava para as expressões faciais da mãe.

        — Bom. Está tarde e amanhã você precisa trabalhar. Eu como aposentada já não me preocupo mais com isso. — levantou-se do sofá gemendo devido às dores nas pernas. — Boa noite.

        — Boa noite, mãe. Benção.

        Sulamita ainda passou alguns minutos ali na sala meditando em tudo o que foi dito por sua mãe. Quem disse que seria fácil fazer a vontade de Deus? Na verdade ela já não sabe o que é fazer a vontade Dele.


*


     André e Fabiana moram juntos praticamente. Desde quando se conheceram há um ano mais ou menos, eles não se desgrudaram mais. Vão ao mercado juntos ou simplesmente ela diz o que ele tem que comprar e ele tranquilamente executa a tarefa. Quanto aos serviços domésticos tudo aconteceu naturalmente. Enquanto a advogada faz o seu papel como dona de casa cozinhando e ajudando sua filha nas tarefas da escola, ele cumpre sua parte como bom “namorido” que é lavando o seu carro, consertando vazamentos na parte hidráulica ou ajustando melhor a elétrica ou simplesmente tirando o pó dos móveis. Fabiana é do tipo de mulher que não suporta ver as coisas fora do lugar ou desorganizadas, isso ela já deixou bem claro muitas vezes.

        O dia transcorreu em seu ritmo normal durante o turno de André. A composição a qual ele conduziu desde o primeiro horário não havia dado sinais de que sofreria alguma avaria a qualquer momento. Na volta da última viagem o inesperado aconteceu tirando o maquinista do foco e também do sério. O seu trem-metrô precisou ficar parado por meia hora. Tanto ele como os passageiros tiveram que esperar pelo restabelecimento da energia dentro de um túnel quente e mal iluminado. Assim que tudo foi resolvido André consultou o relógio percebendo que o pior ainda estava por vir.

        — Ana Carolina. — Balbuciou.

       Mais cedo, Fabiana ligou informando que ficaria até tarde no escritório revendo e separando documentos para apresentar no fórum e o incumbiu de pegar a menina na escola. André não estava só atrasado; ele estava super atrasado e para piorar, a diretora já havia ligado para Fabiana que quase teve um ataque do coração.

        — André, como assim, você ficou maluco, esqueceu de pegar minha filha na escola? — Falou a plenos pulmões pelo telefone.

       — Fica calma, Fabi, eu já estou a caminho, não precisa gritar.

        — Eu estou no meu direito, afinal é a minha filha quem está lá, sozinha. — Ainda vociferando. — se eu soubesse que não dava para contar com você eu pediria a vó dela…

         — Eu não tive culpa, o metrô ficou sem energia e… — desceu no ponto alguns metros longe da escola.

        — Está vendo quando eu falo que você precisa dar um jeito de mudar de vida? Esse seu emprego além de ser medíocre, ele ainda atrapalha a minha rotina.

        Mesmo ofegante André fez questão de responder sem alterar o tom de voz.

        — Tudo bem. Peço desculpas. Mais tarde conversamos.

       Fabiana desligou antes que ele pudesse terminar a sua fala.

       Ana Carolina ao vê-lo na porta da secretaria festejou erguendo os braços.

       — É o meu tio.

      Muito mais compreensiva do que sua namorada, a diretora entendeu tranquilamente o relato dado e ainda fez outros comentários. André deixou a instituição de ensino menos tenso, porém sabia que ainda teria que enfrentar a dama furiosa logo mais.


*


     Bem devagar, sem pressa, como uma serpente que antes de aplicar seu bote ela envolve sua presa de forma sútil. Miguel arrastou Sula para o seu quarto após o término dos estudos da faculdade e ali iniciou sua investida. A princípio, as mãos seguiam quietas, repousada sobre as dela, mas conforme o tempo foi passando e o clima ganhando temperatura, elas tentaram encontrar outro ponto de repouso.

        — Acho melhor pararmos por aqui. — Disse Sula ofegante.

       Fingindo não ter ouvido a recomendação da namorada, o empresário deu sequência às carícias deixando-a sem fôlego.

        — Miguel, por favor.

       Não. Ele não pararia até atingir seu objetivo. Miguel sabe como ninguém deixar uma mulher louca por ele.

        — Não acha melhor esperar?

         — Esperar o que? — Miguel cessou a investida.

         — Como assim o que? Esperar o casamento. Ou não?

         — Pois é… — levantou-se da cama.

        — Pelo que eu sei a bíblia não permite tal relação antes do matrimônio e nós ainda somos cristãos.

        — Há tanta gente fazendo coisa pior. Extorsão dos dízimos, exploração de trabalho voluntário, pastores traindo suas esposas, pessoas que estão dentro das igrejas que espancam seus filhos e mulheres… — passou as mãos no rosto.

       — Eu sei que todas essas coisas acontecem, Miguel, mas não podemos usá-las como desculpa para pecar. Eles estão errados.

        Sula levantou-se também e o abraçou.

         — Espere com paciência. Em breve estaremos liberados e aí então…

         — Só alegria. — Sorriu.


*


    Dentro de casa o clima não estava legal. Era sufocante. Por isso André preferiu sentar-se na parte dos fundos, sendo iluminado somente pela luz da lua. Admirando o satélite natural construído pelo Criador, o maquinista começou a entoar um hino e em seguida fez uma curta oração.

         — Tudo o que Deus faz é bom. — disse para si mesmo.

         — Agora você deu para falar sozinho e no escuro? — Fabiana apareceu na porta que dá para os fundos. — Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece.

         — A lua está linda e senti o desejo de orar…

        — Só espero que tenha orado para que Deus abra essa sua cabeça e coloque juízo nela.

       André resmungou.

        — Você é jovem, bonito, é inteligente, precisa ser mais ambicioso…

        — Tudo o que tenho foi Deus que me abençoou. Se eu tenho alguma coisa hoje é graças a Ele…

        — Amém, irmão. — desdenhou. — O mal de muitos crentes é justamente isso. É achar que Deus vai lhe dar alguma coisa de mão beijada. Vou te mandar a real: ai de mim se eu não corresse atrás, eu estaria vivendo de faxina ou coisa pior.

         — Meu Deus, que coração é esse, Fabi?

       — O que tem o meu coração? — Aprumou-se.

        — Eu pensei que estivesse ao lado de uma mulher de Deus. — Encolheu os ombros.

        — Pronto! Agora você vai me julgar? Quem você pensa que é, seu André Simões? Relacionamento com Deus é algo muito particular, você não acha?

        André estava em choque.

        — Digo e repito: para andar comigo terá que crescer, querer e conseguir. Boa noite.

       Ele voltou a contemplar a lua, talvez buscando uma resposta para tudo o que ouviu e sentiu a minutos atrás. Não há nada de ruim em querer algo melhor, o problema é quando a vida só se resume a isso.



domingo, 22 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 3

 


3


     Tudo aconteceu numa tarde de inverno não tão rigoroso após uma maravilhosa programação da juventude onde as dependências daquela singela igreja Batista foi invadida por diversos jovens de outras denominações. Acreditava-se piamente por parte da liderança num enorme fiasco devido ao dia e às condições climáticas. Deus mais uma vez os surpreendeu permitindo que cerca de sessenta moças e rapazes ocupassem os bancos da congregação.

        André e Sulamita voltavam da atividade exaustos, porém transbordantes de alegria e satisfação. De mãos dadas eles caminhavam rumo a casa de Sula que ficava há três quarteirões da igreja. A conversa entre os dois era sobre trabalho e planos para o futuro. O sonho de André era se formar em economia, algo muito distante da profissão que ele exerce hoje. Já Sula, mesmo naquela época, desejava ser uma profissional no ramo da administração. Faltando alguns passos para chegarem ao portão, André mudou repentinamente de assunto deixando sua noiva sem saber o que falar.

        — Que tal marcarmos a data do nosso casamento?

        As mãos de Sulamita começaram a suar.

         — Você só pode estar de brincadeira comigo?

         — E porque eu estaria brincando com você? Já somos noivos, o que nos impede?

         — Ah, sei lá. Não tivemos uma festa de noivado, nem aliança nós temos.

        — Olha, eu vou entender se você não quiser e…

        — É claro que eu quero. — ela o abraçou e o beijou. — Podemos marcar para Maio do ano que vem. Maio é o mês das noivas. Aí, vai ser tão lindo.

        — Por mim está ótimo. Eu também gosto do mês de Maio. Que tal dia quatorze?

        Sula fingiu estar pensativa.

        — Amei a data, mas, porque exatamente quatorze? O que representa esta data pra você?

         — Meus tataravós chegaram a esta cidade no dia quatorze de maio de 1925, então, é uma forma de homenageá-los.

        — Aí, que lindo. Legal. Gostei. Ano que vem estaremos casados…

        — E felizes. — completou André recebendo beijos de sua amada.


*


     Hoje em dia André Simões segue recebendo beijos e abraços bem quentes quase que diariamente, porém não é Sulamita quem se encontra do outro lado e sim uma advogada linda e imponente. Realmente Fabiana Moraes chegou para fazer dos dias do maquinista uma verdadeira festa.

        — Diz pra mim, você pretende ser operador de metrô a vida toda? — Fabiana escolhia um filme no serviço de streaming sentada em seu sofá.

         — Não sei. Já faço isso há tanto tempo que não parei para pensar.

         — Vou ser sincera. Quando fui para o ensino médio eu já sabia o que queria. Uma advogada muito bem sucedida com escritório próprio e aqui estou eu. Porém não posso e nem devo parar por aqui. — Disse analisando um filme policial estrelado por Liam Neeson.

        — Que bom. E o que mais quer ser?

         — Juíza federal.

        André apertou os lábios.

         — Penso eu que, o sol nasceu para todos, mas nem todos têm a disposição ou condição de usufruir de seus benefícios, entende? Eu quero mais, muito mais e Ana Carolina seguirá os mesmos passos que a mãe dela.

        — Claro… — André não sabia o que responder.

        — E já vou logo dizendo: quem quiser me acompanhar nesta trajetória terá que alçar vôos bem maiores. Captou a mensagem?

        — Sim, sim.

        — Que bom! Agora que tal você ir até a cozinha e preparar aquela pipoca maravilhosa?

       O recado foi dado. Estaria André disposto a seguir em frente ao lado de sua mais nova namorada advogada? Isso só o tempo irá dizer.


*


     Logo após um longo período de aula brigando com o sono e principalmente com a fome, Miguel e Sula fizeram uma pausa no caminho de volta para casa. O lugar escolhido é uma lanchonete bastante conhecida, muito parecida com a do “M” porém com as iniciais B e K. Sulamita adorou a ideia. Após fazerem os pedidos, o casal universitário conversava sobre diversos assuntos: estudos, igreja, política, relacionamentos passados até que Miguel criou coragem para perguntar sobre o futuro deles.

        — Não acha que é muito cedo para esse tipo de conversa? Afinal de contas, ainda estamos nos conhecendo. — Ajeitou os cabelos atrás das orelhas.

        — Sim, claro, mas, você mesma sabe que crente não pode dar sopa para o azar e nós não somos mais adolescentes. Eu venho de um relacionamento e você também, então…

        — Quanto a isso você pode ficar sossegado. Sei muito bem como conduzir as coisas. — riu.

        — Ótimo! E outra coisa. Quero muito conhecer minha sogra. — esfregou as mãos.

         — Sua sogra?

         — Sim, minha sogra. Quando vou conhecê-la?

        — Não acha que estamos indo rápidos demais não? Estamos juntos há um pouco mais de duas semanas.

       Miguel olhou para a tela de led acima do balcão e viu que faltava pouco para o número da senha aparecer.

        — Talvez. — fez uma pausa. — Você está certa. Temos que ser cautelosos. Nada de apressarmos as coisas. — eles deram as mãos.

        Se Sula estava feliz? Sim, claro que estava e muito. Miguel chegou em sua vida na hora certa, no momento em que ela mais se sentia frágil e desamparada humanamente falando. Teria Deus ouvido o seu clamor?


*


      Todos sabem que mãe é um ser quase que sobrenatural. Mãe é aquela pessoa que se antecede aos possíveis problemas. É aquela que segura a sua mão dias antes de sua ruína. Sim, toda mãe sabe das coisas e como sábias que são, elas tentam nos alertar quanto ao perigo. Há alguns dias Miguel havia pedido a Sula para conhecer a tão famigerada dona Nair. Eis que é chegado o tão esperado dia. Para esse encontro, o pequeno empresário fez questão de levar uma caixa de bombons de uma famosa marca de chocolate, além é claro de sua simpatia de sempre.

        — A Sula teve a quem puxar. Realmente vocês são bem parecidas.

        — Você acha? Dizem que eu sou mais bonita.

       Todos riram.

       — E então, senhor Miguel Ramos, quais as suas pretensões com a minha única filha?

         — Mãe? — Sula arregalou os olhos.

         — Qual o problema? Você pode muito bem ser uma mulher adulta, mas ainda assim é minha filha e aí de quem lhe fizer mal. — olhou diretamente para Miguel.

         — Veja bem, dona Nair, sou um homem da igreja e…

         — Isso não quer dizer absolutamente nada. Meu finado marido também era da igreja e não valia o prato que comia. As pessoas precisam ser de Jesus.

        Miguel engoliu seco e respirou fundo.

        — A senhora está certíssima. Jesus é melhor que a igreja. Recapitulando. Sou um homem nascido e criado no evangelho, respeitador e cumpridor das minhas obrigações. Quero muito constituir uma família com Sula debaixo de sua benção, é lógico.

       Nair trocou olhares com a filha que a essa altura estava ruborizada.

       — Você é bom no discurso, senhor Miguel. Vocês têm a minha benção, porém, melhor que a minha bênção é a benção do Senhor. E agora passe pra cá esse chocolate.

         — Aí, mãe. — escondeu o rosto com as mãos.

      Foi uma noite agradável. Os três foram para mesa se deliciar com a famosa torta de frango preparada por Nair. Após o jantar, a idosa preferiu se recolher deixando os pombinhos a sós.

          — Sua mãe é uma “figuraça”.

         — Pois é, você não queria conhecer a sua sogra? Toma-lhe.

       Depois de muitos abraços, beijos e declarações, Miguel decidiu partir faltando poucos minutos para um novo dia. Após se despedir do namorado no portão, Sula é surpreendida com sua mãe parada na varanda.

        — Precisamos conversar sobre esse rapaz.



      


domingo, 15 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 2

 


2


    Ela sabe que mais uma vez chegará atrasada no trabalho e que de novo será chamada atenção por sua gerente, mas a verdade é que Sulamita está dando a mínima para isso. De forma lenta e cuidadosa ela passa a manteiga no pão com mil coisas se passando em sua mente. Uma delas é sem dúvida alguma André, seu ex marido. Se bem que ela já fez de tudo para tentar tirá-lo da cabeça, mas volta e meia aquele sujeito mediano, meio calvo, com cara de intelectual surge como um furacão a desconcentrando. Tudo isso soa muito estranho para ela uma vez que ele já não faz mais parte de sua vida há pelo menos um ano. Sulamita Santos, este é o seu nome desde então. Aliás, este era o seu nome antes de se casar com André. O Simões ficou para trás, assim como o seu casamento e na época em que eles se separaram ela sentiu como se tirassem uma tonelada e meia de suas costas. Voltar a usar o sobrenome do pai foi como renascer.

      Desde quando houve a ruptura na relação, Sula tentou viver a vida o melhor que pode. Ela até cogitou a possibilidade de ingressar na faculdade e realizar um sonho antigo de se formar em administração, mas até o momento ela ainda não teve as condições necessárias para isso(a grana anda um pouco curta) porém ela sabe que no tempo certo Deus há de lhe abrir as portas. Novos tempos. Vida nova e para que esse novo ciclo começasse bem, nada melhor que uma mudança no visual. As longas madeixas negras deram lugar ao curto, na altura dos ombros e até mesmo uma leve emagrecida veio a calhar. Sulamita Santos está ainda mais linda do que antes.

        Diferente dos outros dias, o atraso foi somente de minutos, isso porque o trânsito ajudou bastante. Quando ela pôs os pés na drogaria onde trabalha há sete anos, sua colega de profissão já a aguardava com seu bom humor de sempre.

        — As vezes sinto uma pontinha de inveja de você, Gabi.

          — Há, sério? Inveja de mim, baixinha, gordinha e pobre ainda por cima. — falou separando as caixinhas de vitamina C.

        — É sério. Você está sempre de bom humor. Sempre disposta, sempre…

       — Eu apenas coloco em prática tudo aquilo que o Senhor nos ensinou. Já se esqueceu?

         — É verdade. Precisamos ser luz. Confesso que ando meio desligada quanto a isso. Prometo melhorar. O que temos para hoje? — pôs sua bolsa embaixo do balcão.

         — Hoje o dia está cheio. Nossa querida gerente quer que batemos a meta das vendas dessas vitaminas aqui.

         — Vamos nessa então.


*


      Na estação do metrô onde cerca de um milhão de pessoas circulam diariamente se acotovelando na tentativa de encontrar um lugar vago dentro da composição, Fabiana Moraes, advogada trabalhista se vê às voltas entre responder as mensagens enviadas dos clientes via whatsapp e prestar atenção para não ser derrubada na linha férrea. Normalmente ela costuma se deslocar até o trabalho de carro próprio ou de Uber, porém, especialmente hoje ela precisa ir até o fórum buscar alguns documentos e dar entrada noutros. Fabiana é uma mulher absurdamente bonita, nem tão alta e nem tão magra. Pele branca bem cuidada e um rosto fino marcante. É praticamente impossível passar por ela e não nota-la.

      Devido a pressa, Fabiana saiu de casa sem fazer o desjejum. Ela só teve tempo de deixar Ana Carolina na creche e seguir para o trabalho. Às oito e meia da manhã sua glicose já havia dado sinais de que precisava se alimentar. Foi quando o cheiro inconfundível do pão de queijo a capturou.

        — Por favor. Vou querer a promoção do pão de queijo, por gentileza.

      Mesmo estando de pé encostada no balcão do quiosque, a advogada pode esquecer por alguns minutos o turbilhão de coisas a serem feitas naquele dia para degustar tranquilamente daquelas delícias feitas de farinha, queijo e ovo. De repente seus olhos se cruzaram com os de um dos funcionários do metrô. Um sujeito com pinta de nerd. Bonito, mas nerd. André Simões fez o mesmo pedido que o dela, porém dispensou o copo de guaraná natural dando preferência ao café puro. Muito interessado na mulher branca de terninho cinza claro e pasta, o ferroviário observou o anel em seu dedo. Advogada. Um ótimo motivo para puxar assunto. Eles ainda trocaram alguns olhares até que André criou coragem para abordá-la.

        — Com licença. Posso tirar uma dúvida?

          — Sim? — Fabiana arqueou uma das sobrancelhas bem feitas.

         — Será que eu consigo me aposentar antes dos vinte cinco anos de contribuição como técnico em transporte metroviário?

         — E o que o faz pensar que sei essa questão? — encolheu os ombros.

        André apontou para o anel em seu dedo.

         — Ah, sim. Sei… é, você é bastante observador, hein?

       André abriu o sorriso.

        — Não creio que alguém tão jovem e saudável já queira se aposentar.

          — Não vejo mal algum programar o futuro.

       Após essa breve introdução o papo seguiu e para a surpresa de ambos ele fluiu de forma tranquila, saudável e houve até mesmo alguns pedidos extras de pão de queijo com café. A advogada não sabia como explicar, mas havia algo naquele cara que a atraía demais e quando algo é inexplicável, o melhor a ser feito é explorá-lo até o encontro de sua resolução.


*


     Os dias, as semanas e os meses passaram rápidos demais para o exigente gosto de Sulamita, mas exclusivamente hoje isso até que foi bom. Graças a santa intervenção de Deus, ela deu o ponto pé inicial na faculdade onde pretende passar cinco anos estudando administração. Ao pisar em sala de aula e vê-la repleta de pessoas correndo atrás do mesmo sonho a que ela aspira, foi como entrar numa corrida de cavalos. Literalmente o ramo é bem disputado.

        — Boa noite. Tem alguém sentado aqui?

         — Sim! Você. — respondeu um sujeito moreno de sorriso simpático.

         — Ah, sim. Legal.

         — Prazer, sou Miguel. — esticou o braço.

         — Sulamita.

        Miguel tinha um aperto de mão forte. Ele cheirava a loção pós barba, coisa que a agradou logo de cara. Um homem para ela, não tem a necessidade de ser tão bonito, mas cheiroso… esse sim é um quesito muito importante.

       A aula até que estava interessante, entretanto, a única coisa que não se encontrava de acordo com a conjuntura era o sono. Sula trabalhou o dia inteiro, andou de um lado para outro dentro daquela drogaria e ter que encarar mais quatro horas de aulas teóricas é bastante complicado para quem está acordado desde às seis da manhã. Quando o relógio por fim marcou vinte uma e trinta e o professor deu por encerrada a sua fala, ela rendeu glória ao Criador.

         — Após mil bocejos… — brincou Miguel pegando a mochila.

        — Nossa, eu estou morrendo de sono. — Se espreguiçou.

         — Eu também. Bom, então, até amanhã? — lhe estendeu a mão.

         — Se Deus quiser.

      Na saída do prédio, descendo as escadas, Sula pode ver Miguel colocando o capacete já montado em sua motocicleta, não seria nada mal uma carona, pensou enquanto o assistia deixando as dependências da universidade. Miguel.


*


    A amizade entre Sula e Gabi transcede aquele longo balcão da drogaria onde trabalham. Assim que foi contratada e iniciou suas jornadas diárias entre caixas e mais caixas de medicamentos, vitaminas, produtos para curativos entre outras coisas disponíveis que compõe uma farmácia, Sula soube que aquela moça de voz aguda porém macia seria sua amiga fiel. Além de boa profissional, boa filha e futura boa esposa, Gabriela é sim uma boa serva do Senhor. Gabi é o que podemos chamar de amiga confidente onde você pode tranquilamente despejar sobre ela suas queixas e segredos sem medo, sabendo que eles jamais virão à tona.

        — Miguel? Afinal de contas, você entrou para a universidade para estudar ou para arrumar namorado? — Gabi fazia a recontagem das cartelas de Dipirona.

        — Claro que foi para estudar, não é sua cabeçuda. — pegou uma caixa com frascos de xarope. — mas foi inevitável, o cara é realmente muito atraente…

        — Se eu fosse você focaria nos estudos.

        — É fácil falar para alguém que o prato dela virá quando se está de barriga cheia, não é, dona Gabi.

        — Meu Deus, quanto drama. Eu só estou falando que o momento em que você está vivendo é oportuno. Aproveite para dar uma guinada na vida. Penso eu que, um namorado agora só irá lhe atrapalhar.

        Ela parece minha mãe falando.

       — E quem disse que eu quero me relacionar com alguém agora? Eu só comentei sobre o meu colega de classe…

         — Pra cima de mim, Sula? Conheço bem uma mulher apaixonada.

       Sula abriu os braços e a boca.

        — Vá por mim. Volte a ser o que era antes. Uma mulher forte, uma mulher de oração. No tempo certo Deus vai te abençoar com um varão vindo da parte Dele.

      Pois é! Mais uma vez Gabi estava coberta de razão. Muitas vezes queremos agir por conta própria utilizando nossos falhos recursos deixando Deus de lado. Sula, assim como muitos, sabe bem o que deve ser feito, mas não o faz, optando por guerrear sozinho. O final é sempre trágico.

   


domingo, 8 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 1

 


ALGUÉM DE DEUS 


1


    Há pessoas, por mais incrível que possa parecer, que acreditam piamente que, pelo fato delas se deslocarem ao templo para cultuar, Deus irá sanar de uma vez por todas os seus problemas e adversidades. Isso pode até acontecer porque Deus é soberano, mas na maioria das vezes, voltamos para os nossos lares ainda remoendo as dificuldades. Culto é para cultuar. O Senhor age e sempre agiu em nosso dia a dia, no cotidiano. André e Sulamita, infelizmente não vem atravessando uma boa fase dentro do casamento e isso não é de agora. Eles estão juntos há três anos e há três anos o relacionamento vem sendo um verdadeiro campo de guerra. Ninguém se entende. Ir às celebrações para o casal se tornou algo bastante complicado. Já houve época em que o silêncio entre eles antes e durante o culto era a única forma deles permanecerem lado a lado(acredite se quiser). Sulamita, assim como muitos, acreditava que o convívio com os irmãos, os louvores e até mesmo a palavra pudesse de alguma forma gerar um bem estar entre eles. Ledo engano. André, por sua vez, acha que, indo à igreja mesmo depois de uma discussão, pode ocasionar momentaneamente uma pausa na crise. André não acredita em fórmulas mágicas.

       — Você deveria abrir logo o jogo comigo. — disse Sulamita sem olhar para o marido que dirigia.

        — Quer mesmo recomeçar aquela conversa? — reduziu a velocidade. — não vai nem mesmo esperar chegarmos em casa?

        — Sabe o que eu acho engraçado? Você sempre acha que para tudo tem hora e local.

          — E não é? — parou no semáforo.

         — Pensa bem. Nós não estamos discutindo futebol ou política. É o futuro do nosso casamento que está em jogo aqui. E para isso não há hora e nem lugar.

        — Está bem. Você está certa. Sempre esteve…

         O sinal abriu e se não fosse a buzina de outro veículo logo atrás, André seguiria com seu carro parado em cima da faixa de pedestres.

         — As vezes penso que você está pouco se lixando para a gente, sabia? — falou Sulamita de forma soturna. — Acho que estou lutando sozinha.

         — Pronto! Agora você tem o poder de saber o que eu sinto? Caramba! — deu seta para o lado direito e entrou.

        — Está vendo? Você não está levando a sério e isso me irrita. Quando você vai amadurecer?

        — E quando você vai deixar de ser uma chata?

       A partir desse porto o diálogo foi suspenso e novamente o clima pesado se instaurou. Ao chegarem em casa cada um foi procurar o que fazer numa tentativa inútil de ficarem distante um do outro. O culto da noite foi maravilhoso. Deus falou poderosamente, porém não tocou no assunto casamento. Estaria Ele alheio a nossa situação, pensaram ambos.


*


     O casal Simões são membros de uma congregação modesta, de pouca expressão, e de uma liderança até que razoável há alguns longos anos. André ama sua igreja, ama o seu pastor, e o tem como um verdadeiro homem de Deus, mas há outro que ele considera  como um segundo pai na terra. Pastor Clodoaldo. Jovem ainda, mas de uma sabedoria gigantesca. Clodoaldo é alto e boa pinta, sempre que as coisas estão ruins é para ele que André liga marcando um gabinete.

        — Como assim, quer deixar o casamento? — Clodoaldo entrelaçou os dedos.

        — Pois é. Eu não estou feliz e nem a Sula.

       O escritório de Clodoaldo é pequeno, porém depois que se entra e ocupa uma das poltronas ele se agiganta.

        — Ontem, por exemplo, discutimos dentro do carro voltando para casa depois do culto vespertino. Ou seja, tudo aquilo que foi absorvido durante a celebração foi por água abaixo.

        — Se é que algo foi absorvido. Quais foram os louvores e o tema da mensagem?

      André abaixou os olhos.

       — Posso te fazer uma pergunta? — Clodoaldo descruzou as pernas.

      — Claro que pode. — encolheu os ombros.

        — Você a ama?

        — Se você me fizesse essa pergunta há três anos atrás, eu lhe diria que sim. Hoje já não tenho tanta certeza. Estou confuso.

        — Tem orado neste sentido? — Se recostou.

       — Na verdade, faz tempo que eu não oro nem por mim. Essa crise tem me deixado pra baixo, pastor.

       Clodoaldo levantou-se exibindo uma boa forma e os seus bem medidos um metro e noventa de altura.

        — Deus nunca esteve alheio quanto às nossas lutas. Tudo o que o Senhor quer é que nos rendemos a Ele. Quer que o convidamos para que de fato Ele venha fazer parte da nossa vida. A partir do momento em que não falamos mais com Ele em oração, a vida fica ainda mais difícil. Ficamos perdidos. Recomendo que você retorne com as orações e fale para Ele tudo o que tem vivido e sentido.

         — Sério? Devo falar que estou querendo me separar?

        — Principalmente.

     Clodoaldo só pode estar de brincadeira com a minha cara.


*


      Os pais de André infelizmente já se foram desta terra. Sua mãe faleceu quando o mesmo deixava o ensino fundamental e seu pai um ano antes dele se casar. Sulamita ainda possui sua mãezinha apesar de bastante idosa que a criou debaixo de muita dificuldade. Ela se lembra das vezes em que as duas, para ter o que comer a noite era preciso vender flores durante o dia, mas nem sempre as vendas supriam as necessidades. Graças a Deus, dona Nair Santos conseguiu se empregar em uma clínica médica exercendo o cargo de auxiliar de serviços gerais, hoje conhecido como conservação. Se para André, Clodoaldo é o seu esteio, Nair para a filha é terra firme. Se as coisas vão mal é para os braços dela que a atendente de farmácia corre.

        — Eu te conheço, Sula. O que anda acontecendo entre você e seu querido marido? — Disse Nair acariciando as longas madeixas negras da filha.

        — Muitas coisas. Não sei se a senhora está disposta a ouvir. — respondeu sentada entre as pernas da mãe.

        — Bom! Eu não pretendo sair de casa hoje e sou uma mulher aposentada, então… tempo eu tenho sobrando.

       Após inspirar e expirar, a esposa do ferroviário deixou sua mãe à pá de toda a situação. Nair ouviu tudo com a paciência de um monge budista.

         — Nossa! Não sabia que era tão sério assim. O que vocês pretendem fazer?

         — Na boa? Eu não sei. André infelizmente não é aberto a discussões sobre relacionamento, ele sempre arruma uma desculpa ou se esquiva. — parou de mexer nas unhas. — O que a senhora faria no meu lugar?

        — Vocês são pessoas adultas e adultos resolvem as coisas. Peça orientação ao Senhor, Ele não deixa ninguém sem resposta. É o que eu faria se estivesse em seu lugar.

       Não foi o que Sula gostaria de ter ouvido, mas pelo menos serviu para que ela se lembrasse do Deus vivo o qual ela serve desde a adolescência.


*


     Nada é mais desconfortável para um casal em crise do que a hora de irem para cama repousar depois de um longo dia. Um pouco mais cansado que Sulamita, André se permitiu deitar antes dela e enquanto a aguardava voltar do banho ele aproveitou para pôr sua leitura bíblica em dia usando o celular. Na verdade, tudo o que ele mais queria naquele momento era poder invadir aquele banheiro e ser feliz. Sula estava demorando mais que o habitual e isso reacendeu sua esperança de ter uma boa noite de amor. Normalmente, quando as coisas entre eles ainda era de paz e amor, essa demora no banho por parte de Sula era o indicativo que a mesma estava afim de uma bela noitada. Quando ele ainda sonhava em coquista-la e possivelmente ter algo sério com a morena clara de rosto redondo e longos cabelos negros feito uma noite sem lua, André por vezes se viu pensando em o quanto ele seria grato a Deus por ter aquela beldade como esposa.

       Sula deixou o banheiro já vestida com uma roupa de dormir a qual neutralizou totalmente toda a sua sensualidade. Moletom e uma blusa azul bebê do congresso de mulheres do ano retrasado.

        — Boa noite. — deitou-se.

        — Como assim, boa noite? Pelo que eu saiba ainda somos casados. — deixou o celular de lado.

        — E o que você quer dizer com isso? — Sula puxou um pouco mais o edredom para ela.

        — Nem um beijinho vai rolar?

         — Não! — encolheu-se.

         — Como não? Pelas minhas contas já passamos da trigésima noite no zero a zero…

         — Meu Deus, André, como vocês homens são insensíveis. O clima entre nós vai de mal a pior e a única coisa que passa pela sua cabeça é sexo?

        — Não. Claro que não. Há outras coisas passando também.

         — Tipo?

       Era a chance do operador de metrô pôr para fora tudo o que vem sendo represado em seu coração.

         — Se for para viver assim eu prefiro cair fora, entendeu?

        Sula engoliu seco.

         — Tem razão, eu acho que eu mereço ter alguém de Deus em minha vida e pelo visto você não é a pessoa mais indicada. — Sula aproveitou para esvaziar seu coração também.

         — Sim! Eu também penso da mesma forma. — bocejou. — pra mim já deu. Boa noite!

       Não houve resposta por parte de Sulamita.