domingo, 29 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 4

 


4


     Servir a Deus é algo muito sério. A caminhada com Cristo nunca será uma tarefa fácil. A partir do momento em que tomamos a decisão de seguirmos ao que Ele designou para quem quiser andar em seus passos, é preciso ter a consciência de que estaremos declarando guerra e essa guerra não é contra o nosso semelhante. Esse conflito é contra nós mesmos. Contra nossos pensamentos, atitudes, vontades e gestos. É por isso que se faz necessário uma entrega, uma rendição. O que outrora falávamos que era a nossa vida, agora que somos Dele, a vida já não nos pertence mais. Jamais podemos tomar qualquer decisão sem antes consultá-lo, seja em qual área da vida for. Jesus Cristo é quem está no controle e ponto final.

       Dona Nair serve a Jesus desde a sua tenra infância, já viveu o suficiente para saber o que agrada e o que não agrada a Deus. Quando jovem, ela foi convidada para assumir o ministério da juventude. Ela topou após insistentes pedidos da liderança e também longas jornadas de oração nas madrugadas. Ao ouvir o “sim” de Deus, ela se dirigiu ao pastor para acertar os detalhes no dia seguinte. Foram anos à frente da juventude. Lutas, vitórias, derrotas, mas no final, ao passar a relatoria para outro, todos os liderados estavam cientes o que é de fato servir a Deus.

         — Eu me lembro. A senhora batia muito nessa tecla. Servir a Deus não pode ser de qualquer maneira. — Sula imitou a mãe falando.

         — E mesmo não estando mais na ativa eu sigo com o mesmo pensamento e é por isso que eu te chamei para uma conversa sobre esse rapaz.

             — O que tem o Miguel?

         — Ele diz que serve a Jesus e tudo mais, entretanto não consigo ver verdade nele…

       Sula interrompeu a fala da mãe com um gesto de mão.

        — Cuidado com o que vai dizer, mãezinha. Não caia no julgamento.

         — Sim, claro. Terei cuidado. Quem sou eu para julgar o meu semelhante. Filha, eu lhe peço, nunca tome uma decisão sem antes orar ao Senhor. Pergunte se ele, Miguel, é de fato o homem que Ele quer em sua vida.

       Aquela conversa não estava agradando nem um pouco a Sula. Normalmente quando não nos encontramos no centro da vontade do Senhor não gostamos de sermos confrontados.

         — Pode deixar, dona Nair. Terei cuidado. — bocejou.

        — E quanto ao André?

        — André, o que tem ele? — A expressão de Sulamita mudou drasticamente.

         — Você nunca mais falou nele.

        — Óbvio que não. André foi um capítulo na minha vida que eu não tenho a mínima vontade de lembrar.

        — Sério mesmo, você o odeia tanto assim? — Nair apertou os olhos atrás dos óculos.

        — Não é questão de ódio, ele só não foi alguém que Deus queria em minha vida. Só isso. — outro bocejo.

        — Uma pena o casamento de vocês ter acabado. Apesar de tudo o que houve, eu conseguia ver um futuro ali.

       Sula não respondeu, apenas olhava para as expressões faciais da mãe.

        — Bom. Está tarde e amanhã você precisa trabalhar. Eu como aposentada já não me preocupo mais com isso. — levantou-se do sofá gemendo devido às dores nas pernas. — Boa noite.

        — Boa noite, mãe. Benção.

        Sulamita ainda passou alguns minutos ali na sala meditando em tudo o que foi dito por sua mãe. Quem disse que seria fácil fazer a vontade de Deus? Na verdade ela já não sabe o que é fazer a vontade Dele.


*


     André e Fabiana moram juntos praticamente. Desde quando se conheceram há um ano mais ou menos, eles não se desgrudaram mais. Vão ao mercado juntos ou simplesmente ela diz o que ele tem que comprar e ele tranquilamente executa a tarefa. Quanto aos serviços domésticos tudo aconteceu naturalmente. Enquanto a advogada faz o seu papel como dona de casa cozinhando e ajudando sua filha nas tarefas da escola, ele cumpre sua parte como bom “namorido” que é lavando o seu carro, consertando vazamentos na parte hidráulica ou ajustando melhor a elétrica ou simplesmente tirando o pó dos móveis. Fabiana é do tipo de mulher que não suporta ver as coisas fora do lugar ou desorganizadas, isso ela já deixou bem claro muitas vezes.

        O dia transcorreu em seu ritmo normal durante o turno de André. A composição a qual ele conduziu desde o primeiro horário não havia dado sinais de que sofreria alguma avaria a qualquer momento. Na volta da última viagem o inesperado aconteceu tirando o maquinista do foco e também do sério. O seu trem-metrô precisou ficar parado por meia hora. Tanto ele como os passageiros tiveram que esperar pelo restabelecimento da energia dentro de um túnel quente e mal iluminado. Assim que tudo foi resolvido André consultou o relógio percebendo que o pior ainda estava por vir.

        — Ana Carolina. — Balbuciou.

       Mais cedo, Fabiana ligou informando que ficaria até tarde no escritório revendo e separando documentos para apresentar no fórum e o incumbiu de pegar a menina na escola. André não estava só atrasado; ele estava super atrasado e para piorar, a diretora já havia ligado para Fabiana que quase teve um ataque do coração.

        — André, como assim, você ficou maluco, esqueceu de pegar minha filha na escola? — Falou a plenos pulmões pelo telefone.

       — Fica calma, Fabi, eu já estou a caminho, não precisa gritar.

        — Eu estou no meu direito, afinal é a minha filha quem está lá, sozinha. — Ainda vociferando. — se eu soubesse que não dava para contar com você eu pediria a vó dela…

         — Eu não tive culpa, o metrô ficou sem energia e… — desceu no ponto alguns metros longe da escola.

        — Está vendo quando eu falo que você precisa dar um jeito de mudar de vida? Esse seu emprego além de ser medíocre, ele ainda atrapalha a minha rotina.

        Mesmo ofegante André fez questão de responder sem alterar o tom de voz.

        — Tudo bem. Peço desculpas. Mais tarde conversamos.

       Fabiana desligou antes que ele pudesse terminar a sua fala.

       Ana Carolina ao vê-lo na porta da secretaria festejou erguendo os braços.

       — É o meu tio.

      Muito mais compreensiva do que sua namorada, a diretora entendeu tranquilamente o relato dado e ainda fez outros comentários. André deixou a instituição de ensino menos tenso, porém sabia que ainda teria que enfrentar a dama furiosa logo mais.


*


     Bem devagar, sem pressa, como uma serpente que antes de aplicar seu bote ela envolve sua presa de forma sútil. Miguel arrastou Sula para o seu quarto após o término dos estudos da faculdade e ali iniciou sua investida. A princípio, as mãos seguiam quietas, repousada sobre as dela, mas conforme o tempo foi passando e o clima ganhando temperatura, elas tentaram encontrar outro ponto de repouso.

        — Acho melhor pararmos por aqui. — Disse Sula ofegante.

       Fingindo não ter ouvido a recomendação da namorada, o empresário deu sequência às carícias deixando-a sem fôlego.

        — Miguel, por favor.

       Não. Ele não pararia até atingir seu objetivo. Miguel sabe como ninguém deixar uma mulher louca por ele.

        — Não acha melhor esperar?

         — Esperar o que? — Miguel cessou a investida.

         — Como assim o que? Esperar o casamento. Ou não?

         — Pois é… — levantou-se da cama.

        — Pelo que eu sei a bíblia não permite tal relação antes do matrimônio e nós ainda somos cristãos.

        — Há tanta gente fazendo coisa pior. Extorsão dos dízimos, exploração de trabalho voluntário, pastores traindo suas esposas, pessoas que estão dentro das igrejas que espancam seus filhos e mulheres… — passou as mãos no rosto.

       — Eu sei que todas essas coisas acontecem, Miguel, mas não podemos usá-las como desculpa para pecar. Eles estão errados.

        Sula levantou-se também e o abraçou.

         — Espere com paciência. Em breve estaremos liberados e aí então…

         — Só alegria. — Sorriu.


*


    Dentro de casa o clima não estava legal. Era sufocante. Por isso André preferiu sentar-se na parte dos fundos, sendo iluminado somente pela luz da lua. Admirando o satélite natural construído pelo Criador, o maquinista começou a entoar um hino e em seguida fez uma curta oração.

         — Tudo o que Deus faz é bom. — disse para si mesmo.

         — Agora você deu para falar sozinho e no escuro? — Fabiana apareceu na porta que dá para os fundos. — Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece.

         — A lua está linda e senti o desejo de orar…

        — Só espero que tenha orado para que Deus abra essa sua cabeça e coloque juízo nela.

       André resmungou.

        — Você é jovem, bonito, é inteligente, precisa ser mais ambicioso…

        — Tudo o que tenho foi Deus que me abençoou. Se eu tenho alguma coisa hoje é graças a Ele…

        — Amém, irmão. — desdenhou. — O mal de muitos crentes é justamente isso. É achar que Deus vai lhe dar alguma coisa de mão beijada. Vou te mandar a real: ai de mim se eu não corresse atrás, eu estaria vivendo de faxina ou coisa pior.

         — Meu Deus, que coração é esse, Fabi?

       — O que tem o meu coração? — Aprumou-se.

        — Eu pensei que estivesse ao lado de uma mulher de Deus. — Encolheu os ombros.

        — Pronto! Agora você vai me julgar? Quem você pensa que é, seu André Simões? Relacionamento com Deus é algo muito particular, você não acha?

        André estava em choque.

        — Digo e repito: para andar comigo terá que crescer, querer e conseguir. Boa noite.

       Ele voltou a contemplar a lua, talvez buscando uma resposta para tudo o que ouviu e sentiu a minutos atrás. Não há nada de ruim em querer algo melhor, o problema é quando a vida só se resume a isso.



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